Enquanto Natália desnudava dos pequenos ramos as verdes folhinhas do alecrim, lembrava-me do modo como eu costumava escrever cartas de amor. A leveza das mãos da militante comunista tocando o cheiro do tempero que seria levado ao alimento descortinava as palavras. Tantas vezes escrevi cartas de amor em rompantes, na brutalidade de sentimentos arredios, de dores agudas, de indecifráveis quereres. O cuidado de Natália com o alecrim opunha-se a crueza das palavras das cartas que me vinham à memória. Era como se as palavras de amor, assim como o verde das folhinhas do alecrim, pedissem-nos ternura.
Percorreu muitos caminhos o ramo de alecrim até chegar em nossas mãos. Houve quem o colheu, em meio a uma imensidão de outros. Houve quem o guardou para a viagem à feira, quem o depositou nas prateleiras do supermercado. Antes disso houve ainda quem – na tentativa de lhe tirar a poesia – conferiu-lhe um preço, uma cifra, como se um alecrim, sim um alecrim, pudesse realmente ser objeto do mercado. Até encontrar os carinhos das mãos de Natália, o alecrim conheceu outras gentes, outros ares. Mas foi ali, no instante em que servira de alimento, ao perfumar a cozinha, que o alecrim desmanchado cumpriu com sua função. E o fez acarinhado, como se o gesto terno de lhe retirar as folhas levado a cabo pela mulher a minha frente, realizasse-lhe a felicidade.
Percorrem muitos caminhos as palavras de amor até chegarem às cartas. Há quem as colha entre todas as possibilidades que a linguagem oferece. Há quem as guarde nas primeiras camadas da alma. Antes disso há ainda quem – na tentativa de lhes garantir poesia – confira-lhes um sentimento originário, uma dor, uma alegria, uma saudade, um furor. Até encontrar a escrita, as palavras das cartas de amor conhecem o indizível das gentes, o incognoscível das gentes e talvez elas – e apenas elas, as palavras – sejam capazes das cumplicidades silenciosas, tanto que antes da palavra, do verbo, tudo era silêncio e mesmo o silêncio, dada a inexistência do som, era também uma inexistência, mas uma que silencia. Mas é aqui, no instante em que a lágrima fere o horizonte, em que a alma toda vem às superfícies dos olhos e a saudade caçoa do tempo, que as palavras de amor que colho costumam cumprir com sua função. E o fazem com a violência dos amores que se sentem dores, amores demais.
Enquanto Natália desnudava dos pequenos ramos as verdes folhinhas, as palavras e o alecrim se solidarizavam umas com o outro. A leveza das mãos da militante comunista tocando o cheiro do tempero que seria levado ao alimento descortinava minha própria necessidade de cuidado com as palavras e as cartas. Jurei então – e ratifico agora o juramento – que minhas próximas cartas de amor sofrerão de brutalidades somente em exceção. Compartilhar-se-á cada palavra com a ternura mesma com a qual se desfaz um ramo de alecrim. Das mãos de Natália em diante, estas cartas de amor que escrevo ao tempo, serão um afeto, um carinho, uma gratidão.
Para Natália Paulino, em agradecimento pela nossa sexta-feira.