Wednesday, January 31, 2007

Pró-nome reflexivo


Por vezes é se reduzir ao máximo,
Encolher-se, retomar-se, pôr-se em posição fetal.

Por vezes é abraçar as próprias pernas,
contrair
cada
articulação
do
corpo,
dobrar-se,
conter-se!

Por vezes, é – inteiriço –
devorar-se, engolir-se, digerir-se.

Por vezes é não derramar gota de lágrima,
chorar-se simplesmente, em mudez perplexa.

Por vezes é não pronunciar palavra,
.
.
.
calar-se, silenciar-se.

Por vezes, não havendo palavra, é se permitir não ser,
inexistir-se, desfazer-se.

Por vezes é acarinhar o tempo e deixar que passe:
Doer-se, doer-se, doer-se.

Para Bruna Falcão, quem me socorre nas análises afetivo-sintáticas.

Sunday, January 28, 2007

Crônica sobre a ternura


Enquanto Natália desnudava dos pequenos ramos as verdes folhinhas do alecrim, lembrava-me do modo como eu costumava escrever cartas de amor. A leveza das mãos da militante comunista tocando o cheiro do tempero que seria levado ao alimento descortinava as palavras. Tantas vezes escrevi cartas de amor em rompantes, na brutalidade de sentimentos arredios, de dores agudas, de indecifráveis quereres. O cuidado de Natália com o alecrim opunha-se a crueza das palavras das cartas que me vinham à memória. Era como se as palavras de amor, assim como o verde das folhinhas do alecrim, pedissem-nos ternura.

Percorreu muitos caminhos o ramo de alecrim até chegar em nossas mãos. Houve quem o colheu, em meio a uma imensidão de outros. Houve quem o guardou para a viagem à feira, quem o depositou nas prateleiras do supermercado. Antes disso houve ainda quem – na tentativa de lhe tirar a poesia – conferiu-lhe um preço, uma cifra, como se um alecrim, sim um alecrim, pudesse realmente ser objeto do mercado. Até encontrar os carinhos das mãos de Natália, o alecrim conheceu outras gentes, outros ares. Mas foi ali, no instante em que servira de alimento, ao perfumar a cozinha, que o alecrim desmanchado cumpriu com sua função. E o fez acarinhado, como se o gesto terno de lhe retirar as folhas levado a cabo pela mulher a minha frente, realizasse-lhe a felicidade.

Percorrem muitos caminhos as palavras de amor até chegarem às cartas. Há quem as colha entre todas as possibilidades que a linguagem oferece. Há quem as guarde nas primeiras camadas da alma. Antes disso há ainda quem – na tentativa de lhes garantir poesia – confira-lhes um sentimento originário, uma dor, uma alegria, uma saudade, um furor. Até encontrar a escrita, as palavras das cartas de amor conhecem o indizível das gentes, o incognoscível das gentes e talvez elas – e apenas elas, as palavras – sejam capazes das cumplicidades silenciosas, tanto que antes da palavra, do verbo, tudo era silêncio e mesmo o silêncio, dada a inexistência do som, era também uma inexistência, mas uma que silencia. Mas é aqui, no instante em que a lágrima fere o horizonte, em que a alma toda vem às superfícies dos olhos e a saudade caçoa do tempo, que as palavras de amor que colho costumam cumprir com sua função. E o fazem com a violência dos amores que se sentem dores, amores demais.

Enquanto Natália desnudava dos pequenos ramos as verdes folhinhas, as palavras e o alecrim se solidarizavam umas com o outro. A leveza das mãos da militante comunista tocando o cheiro do tempero que seria levado ao alimento descortinava minha própria necessidade de cuidado com as palavras e as cartas. Jurei então – e ratifico agora o juramento – que minhas próximas cartas de amor sofrerão de brutalidades somente em exceção. Compartilhar-se-á cada palavra com a ternura mesma com a qual se desfaz um ramo de alecrim. Das mãos de Natália em diante, estas cartas de amor que escrevo ao tempo, serão um afeto, um carinho, uma gratidão.

Para Natália Paulino, em agradecimento pela nossa sexta-feira.

Thursday, January 25, 2007

Crônica sobre a madrugada


A cidade respira enquanto o carro se desloca na madrugada. Quem guia o automóvel percebe a ocorrência dos desencontros nas esquinas. A cidade conspira enquanto o carro se desloca na madrugada. Quem percorre as calçadas passa a conhecer estranhamentos. A cidade incita enquanto o carro se desloca na madrugada. As prostituas da Av. Conselheiro Aguiar recitam Vinícius de Moraes enquanto esperam seus fregueses.

A cidade assassina enquanto o carro se desloca na madrugada. Meninos negros matam e morrem na metrópole miserável desvairada. A cidade lucra enquanto o carro se desloca na madrugada. Há quem trabalhe, há quem encha os bolsos, há quem se vicie e tudo está intimamente ligado. A cidade poetiza enquanto o carro se desloca na madrugada. Moças e rapazes sentados em bares falam do Governo, do show de Chico, da luta de classes e criticam o pós-modernismo.

A cidade fere enquanto o carro se desloca na madrugada. Há um moço em frente a um teclado dizendo coisas inevitáveis. A cidade versa enquanto o carro se desloca na madrugada. As ruas trocam seus lugares, procuram umas às outras, percorrem-se à revelia, encontram-se e desencontram-se naquelas esquinas. A cidade ama enquanto o carro se desloca na madrugada. Mas quem guia o automóvel só percebe a ocorrência de desencontros.

Tuesday, January 23, 2007

Crônica sobre a padaria


O fim da tarde amarela o céu de Candeias. As crianças brincando nas ruas nem sentem a hora passar. Jajá as mainhas se debruçarão nas beiradas das varandas gritando pelos meninos. – Olha o banho, Paulinho! – Olha a janta, Carol! Os moços que ensaiam no louvor da Igreja Presbiteriana afinam os instrumentos. Daqui de cima, é possível ouvir o tinir de cada corda do violão. Do mesmo modo é possível perceber o sol baixando nas paredes dos prédios cujas frentes são ao poente. Vovó Nilza sempre dizia que não se deve morar numa casa ao poente: - As paredes ficam quentes a noite inteira. Os pardais piam antes do sereno ter início. O amarelo do céu, as cordas do violão e os pardais são uma única celebração.

Por vezes é até difícil escrever com tudo acontecendo tão calmamente. Quando a tarde se comporta deste modo – e isso acontece quase que diariamente – as superfícies se tornam de um colorido que parece querer se perenizar. É como se os meninos brincando de pega-congelou, congelados, eternizassem-se junto às nuvens róseas do oeste. Com a calmaria, tudo se estende mais no tempo. A escrita perde a razão, o porquê, vira só sentimento e sente, aparentemente estática, materialmente inexistente, sente apenas, sente e não se consuma, consome-se. Até que o fim da tarde se desenlaça e os telefones tocam, os moços na Igreja tocam, os botões do teclado tocam, as campainhas tocam e o colorido amarelado se desfaz.

Neste instante Iemanjá ergue lentamente seus olhos sobre as águas. A praia está tranqüila, é uma terça-feira de um janeiro de um ano de Xangô e mesmo Iansã está pacífica entre as nuvens róseas, no que restou do rastro do sol no horizonte terrestre. Iemanjá então alisa o véu do mar e pronuncia “noite”, Dona Fátima me lembra da padaria e as mainhas gritam pelos meninos nos parapeitos. É noite em Candeias.

Monday, January 22, 2007

Crônica sobre a floresta

Há uma floresta de baobás no mais profundo desta alma. É um bosque de árvores gigantes que demandam bastante espaço entre umas e outras. São árvores cujas raízes de tão longas dançam ciranda com os meninos e as meninas que habitam a floresta. Os meninos e as meninas são domadores do tempo. Arremessam-no sobre as copas das árvores e ele despenca furtivo com o peso da gravidade dos corações.

O solo sob as árvores é úmido e junto com os cogumelos nascem amores de juventude. Os meninos e as meninas pegam os cogumelos e os amores de juventude e desfazem o tempo, redesenham as fronteiras do que é matéria e do que é sonho. Por vezes, quando a paixão corre tresloucada entre os troncos dos baobás, alguns meninos e algumas meninas tranformam tudo o que é matéria em sonho, nada mais existindo que não seja menino, menina, cogumelo, amor de juventude, tempo, paixão e sonho. Ah! Permanecem também os baobás. Estes fincam suas raízes no peito de cada menino, de cada menina, até que eles e elas, cansados de tanto peso, remontam o chão.

Quando os meninos e as meninas não vêem, o tempo se fecha dentro dos troncos das velhas árvores. Aí se faz em passado, presente e futuro. Mas os meninos e as meninas, logo que percebem a ousadia do tempo, fazem-lhe cócegas, puxam a linha do horizonte, e se abraçam ao presente. O passado vira identidade, o futuro, os meninos e as meninas conhecem, ganha ares de esperança. Assim que enjoam do presente, as meninas e os meninos comem as flores dos baobás. Digerem tudo muito calmamente. Depois limpam os dentes com palitos de agradecimento.

Entre os baobás há fios invisíveis tecidos com o vermelho da história. Nesses fios os meninos e as meninas não bolem, a não ser quando chega a hora de partir. Neste momento os meninos e as meninas se despedem das velhas árvores e seguem com o tempo. Mas nunca vão todos. Sempre nascem novos meninos e meninas na floresta e sempre estão eles e elas a pular entre as raízes dos baobás. Os meninos e as meninas que ficam recebem dos baobás um remedinho contra a ausência do tempo ou o seu excessivo prolongamento que as árvores chamam de saudade. Até que esses meninos e essas meninas também se deixem ir pelos fios. Todos e todas um dia o fazem. Os baobás não, estes sustentam tudo – a não ser quando se sustentam nos corações dos meninos e das meninas – e em seu sustento há uma palavra, um gesto, um compartilhar que os meninos e as meninas têm a mania de amar: a poesia.