Sunday, January 28, 2007

Crônica sobre a ternura


Enquanto Natália desnudava dos pequenos ramos as verdes folhinhas do alecrim, lembrava-me do modo como eu costumava escrever cartas de amor. A leveza das mãos da militante comunista tocando o cheiro do tempero que seria levado ao alimento descortinava as palavras. Tantas vezes escrevi cartas de amor em rompantes, na brutalidade de sentimentos arredios, de dores agudas, de indecifráveis quereres. O cuidado de Natália com o alecrim opunha-se a crueza das palavras das cartas que me vinham à memória. Era como se as palavras de amor, assim como o verde das folhinhas do alecrim, pedissem-nos ternura.

Percorreu muitos caminhos o ramo de alecrim até chegar em nossas mãos. Houve quem o colheu, em meio a uma imensidão de outros. Houve quem o guardou para a viagem à feira, quem o depositou nas prateleiras do supermercado. Antes disso houve ainda quem – na tentativa de lhe tirar a poesia – conferiu-lhe um preço, uma cifra, como se um alecrim, sim um alecrim, pudesse realmente ser objeto do mercado. Até encontrar os carinhos das mãos de Natália, o alecrim conheceu outras gentes, outros ares. Mas foi ali, no instante em que servira de alimento, ao perfumar a cozinha, que o alecrim desmanchado cumpriu com sua função. E o fez acarinhado, como se o gesto terno de lhe retirar as folhas levado a cabo pela mulher a minha frente, realizasse-lhe a felicidade.

Percorrem muitos caminhos as palavras de amor até chegarem às cartas. Há quem as colha entre todas as possibilidades que a linguagem oferece. Há quem as guarde nas primeiras camadas da alma. Antes disso há ainda quem – na tentativa de lhes garantir poesia – confira-lhes um sentimento originário, uma dor, uma alegria, uma saudade, um furor. Até encontrar a escrita, as palavras das cartas de amor conhecem o indizível das gentes, o incognoscível das gentes e talvez elas – e apenas elas, as palavras – sejam capazes das cumplicidades silenciosas, tanto que antes da palavra, do verbo, tudo era silêncio e mesmo o silêncio, dada a inexistência do som, era também uma inexistência, mas uma que silencia. Mas é aqui, no instante em que a lágrima fere o horizonte, em que a alma toda vem às superfícies dos olhos e a saudade caçoa do tempo, que as palavras de amor que colho costumam cumprir com sua função. E o fazem com a violência dos amores que se sentem dores, amores demais.

Enquanto Natália desnudava dos pequenos ramos as verdes folhinhas, as palavras e o alecrim se solidarizavam umas com o outro. A leveza das mãos da militante comunista tocando o cheiro do tempero que seria levado ao alimento descortinava minha própria necessidade de cuidado com as palavras e as cartas. Jurei então – e ratifico agora o juramento – que minhas próximas cartas de amor sofrerão de brutalidades somente em exceção. Compartilhar-se-á cada palavra com a ternura mesma com a qual se desfaz um ramo de alecrim. Das mãos de Natália em diante, estas cartas de amor que escrevo ao tempo, serão um afeto, um carinho, uma gratidão.

Para Natália Paulino, em agradecimento pela nossa sexta-feira.

4 Comments:

At 7:02 AM, Anonymous Anonymous said...

Que bonita crônica Beto!
Leve, delicada e sutil...
Parabéns!

 
At 5:40 PM, Anonymous Anonymous said...

OLha Beto:


Crônica vermelha


Bandeira vermelha hasteada no km58 da BR-116. Pássaros voando sem rumo, tentando alcançar o horizonte de cores e de sonhos. O sol a sinalizar que ainda é dia. Nuvens brincalhonas a saltitar no céu azul resplandecente. Homens e mulheres a sonhar com o dia em que poderão amanhecer tranqüilos, prontos para cultivar a terra e produzir alimentos para todos. A terra, verde de chuva e de esperança, a comungar desse sonho. As flores encantadas só de imaginar o dia em que cercas não mais impedirão o acesso dos homens e mulheres à terra.
Perto dali, e em todos os lugares, o capital e as leis aprisionam a terra, as flores, o mar, as pessoas, as cores e os sonhos, impedindo o alvorecer de dias de paz e de amor. Mas a grande família de homens excluídos da vida resiste, luta e sorri, com o brilho da esperança em cada olhar.
Festas são realizadas diariamente para resgatar o encantamento. Lavadeiras são cantadas por todos; crianças fazem da reforma agrária sua bandeira; palmas sinalizam a certeza de um dia sem opressão; o sol e a lua ficam juntos, por um instante, para dançar em comunhão com aquelas vidas; o vento, ao sacudir a lona preta, também participa; nuvens laranjas espalham-se no céu e transformam-se em bichos para chamar a atenção do bebê que se distrai ao olhar carros passando velozes pela estrada e que nem desconfiam da grande festa que anima aquela comunidade unida pelo amor e pelo sonho da terra livre...


AmabeL.


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At 4:10 AM, Blogger Unknown said...

Meu amigo entre os mais queridos Beto!!! Só queria dizer como é bom saber que tenho você sempre comigo!!! Na presença e na "ausência"
:)
um beijo!
Dois beijos!
Tres beijos!
Mil beijos!!!!

 
At 10:16 AM, Anonymous Anonymous said...

"alecrim, alecrim dourado
que nasceu no campo
sem ser semeado
oh meu amor, quem te disse assim,
que a flor do campo é o alecrim!"

:-D

 

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