Friday, October 17, 2008

Fábula sobre o fim


O fim lambuzou os olhos das horas com o suor das viagens. As horas então verteram algum desconforto, mas logo se danaram a rir. O fim contou todas as horas e nelas já havia sinais do tempo. O tempo, eu vi, vinha acocorado nos ombros de um baobá. Baobás - mas isto é segredo - caminham sempre que os tambôs dos povos negros ecoam no Pátio de São Pedro. O fim, cheirando o tempo, a tempo escreveu nas horas um breve poema tomando emprestadas as linhas das mãos de um poeta feliz. A poesia oriunda do fim deu braços ao tempo e, enraizando-se com ele no velho baobá, diluiu-se na terra. Assim surgiu a primavera. Assim - acredite - a pétala desafiou as gentes e as gentes - acarinhando-se e cortando-se em flor - desafiaram o capital.

O fim sorriu e soube, pela primeira vez, que por mais importante que fosse, jamais existiria fatalmente. Que era cria da história, um ponto fronteiriço, mais uma travessura do tempo. Que depois do fim havia um depois, e ele não era fim, mas recomeço. O fim, agora lambuzado de seiva de baobá e de gentes, descansou tranquilo e assistiu pacífico ao modo como um moço deu ao filho de Xangô a lua de presente. O fim julgou aquilo tudo uma boniteza. O baobá que lhe sombreava o descanso, riu-se acompanhado pelas horas e cantou com elas uma ciranda. A primavera, neste instante, deitou-se no colo da tarde e viu livre o poeta que seguia. O poeta ia. Namorava a lua.

Tuesday, April 29, 2008

Crônica sobre a distância


Desdobrado o espaço, faz-se a distância. Não importam metros, quilômetros. É saudade que se conta nas entrelinhas. Há longevidades não competentes à física. Há tardes, por exemplo, em que o espaço, terno, toma o tempo pela mão e passeia com ele pela Várzea, namorando displicentemente. Nada há o que marque seus passos. Seus calcanhares não percorrem quarteirões, mas orvalho, seus rastros não deixam pegadas, mas réstia de sol.

É como se as margens do Capibaribe convidassem um à outra para dançar. A Rua da Aurora teria entre os lábios a Rua do Sol. A Ponte Velha pularia amarelinha com a Giratória. Oxum, rindo-se toda, estenderia o corpo sobre a cidade modificada pelo rio. Cada rua se trocaria em esquinas com todas as outras. Não haveria paralelas, somente encontros. A da União cumprimentaria a do Sossego, a das Ninfas emprestaria asas a Agamenon, que deixaria de ser avenida e perderia tal nome, chamar-se-ia Nara, palavra com mais jeito de pétala.

Depois de tanto, nada se concebe alheio à falta. Há em cada pedra portuguesa a vontade de que ali voltem a tocar as demais. Há nas ruas certa ânsia para que nelas corram todas as outras. Do que a Rua do Hospício vive, senão de uma louca vontade de que por si caminhe a Rua da Saudade? No asfalto quente das manhãs poluídas da metrópole resiste esse sentimento como num poema. Daí não haver reforma da Conde da Boa Vista que chegue. Empresas de ônibus, construtoras, automóveis e atacados desconhecem delicadezas só tangíveis por bailarinos e operários.

A distância persiste à dobradura do espaço. Isso, bem do jeito como Mariana brinca com seus origâmis. É do sabor de beijo de primeiro namorado em noitinha de terça-feira. Faz escalas de mapas cartográficos entre o planalto central e a praça do Derby parecerem linhas astrais e influências zodiacais de ascendentes. Faz passagem de avião sugerir estrofe de Pessoa e tudo em nós uma Lisboa revisitada. A distância é tensão entre. Entre o Alto do Céu, na periferia de Casa Amarela, e os anéis de Saturno, a despeito de uma possível insensatez, não conheço distância. Mas entre a península itálica e o Marco Zero há muito mais do que um oceano. Há uma paixão de menina por um nariz vermelho de palhaço. E saudade, muita saudade.

Apenas disso, enciúma-se o tempo. Porque sabe ele que verdadeiras distâncias, não pode curar. Cultivamo-nas de modo que vivam elas conosco. Quem nunca se pensou na Rua da Aurora quando trocava pés pelas calçadas da Rua do Sol? A seu modo, num mesmo espaço vivem tantas ruas, tantas cidades, tantas gentes quanto uma saudade possa comportar. Mas isso apenas até o instante em que as margens do Capibaribe convidem uma à outra para dançar e em que avenida possa levar título de pétala. É segredo, mas suspiram as esquinas que fronteiras se desfazem em abril.

Para Nara Vieira, por nossa distância.

Monday, January 07, 2008

Crônica sobre a janela


Eram sempre o cronista e a janela. Inevitavelmente, o cronista e a janela. Sentava-se ele a escrever e lá estava ela, aberta. Abria-se ela e cá estava ele, escrevendo. Por vezes havia a crônica. Por vezes havia a tarde. Mas nada disso lhes era fundamental. Bastavam-se, cronista e janela, no mais era arte.

Quando resolvia escrever, sabia o cronista o que fazer: sentava-se diante da janela, descalçava os pés, insistia com uma canção de Noel Rosa, curvava-se sutilmente sobre o braço direito, sentia uma íntima saudade do homem que amara e abria-se calmamente em janela. Aproveitava a tarde e dela retirava aquilo que o papel demandava para a criação da palavra.

Quando resolvia entardecer, sabia a janela o que fazer: coloria os olhos do cronista, azulava-se de início, cor de céu de Candeias, avermelhava-se em despedida, tons de fragilidade crepuscular, sentia uma íntima saudade do homem que amara e escrevia-se calmamente em cronista. Aproveitava a crônica e dela retirava aquilo que o tempo requeria para desafiar os relógios com poemas.

Contrariando argumentos de causalidade, qualquer que seja ela, a tarde nunca entrou pela janela, a crônica nunca saiu das mãos do cronista. Não havia cronista sem janela. Inexista janela sem cronista. Concebiam-se um ao outro. Tanto que boniteza mesmo era perceber-se verbo um do outro. Naquilo sim em que um sujeito só age e transforma o mundo a partir da realização do outro e vice e versa, coisa que há quem chame de dialética. O cronista enjanelava-se e, apenas assim, acontecia no mundo. A janela encronistava-se e, justamente por isso, era o mundo.

Daí ser impossível tratar a crônica e a tarde com neutralidade. Neutralidade inclusive, qualquer que seja ela, é algo completamente desprovido de poesia. A tarde não entraria pela janela porque o próprio cronista conjurava tarde em palavras. A crônica não sairia das mãos do cronista porque lá fora ela – a crônica – já era construída, embora sem pontuação, pelos desenhos das nuvens no azul. Crônicas e tardes também não se afastam. Entre as linhas da crônica a tarde caminha, entre os caminhos da tarde a crônica se completa. Que seja dialética. Há, por isso, quem apelide de ternura.

Para Luciano Oliveira, porque as semanas são cada vez mais tempo para certas coisas e menos para outras.

Monday, December 03, 2007

Carta ao poeta desaparecido


Se lhe perguntarem, meu amigo, o porquê de suas atuais ausências das palavras, diga-lhes que você está a largar saudades por aí, que anda de equilibrista em espiral de calendário, segue colhendo alecrim. Lembre, como que por nada, que tem ouvido uns bons sambas do Noel Rosa e que pressente cheiro de carnaval nas ruas de nosso Recife. Assegure que está muitíssimo preocupado com o futuro das andorinhas. Aproveite e fale um tanto mal da transposição do Rio São Francisco.

Mas não, meu bom amigo, não fale a verdade. Você é poeta, não é funcionário público: não tem presunção de boa-fé! Mas também não precisa mentir, porque essa coisa de “ou é verdade ou é mentira” não passa de reducionismo e essas dicotomias rasas não funcionam no poema. É só fingir um bocadinho, entende? Na vá admitir que se escreve pouco, se quase não se dá às letras, é porque o texto já lhe é, por demais, perigoso. O poema eterniza a dor. Mas assumir essas fragilidades é o fim, é eternizar o poema. E ninguém agüenta, nem mesmo o leitor mais encantado e sofrido, um poeta de repeteco.

Vá lá que você se encontre preso naquela mesma rima barata. É até compreensível que já não se aperceba de suas intimidades com as linhas, que nem as tardes de Candeias lhe façam repletos os olhos. Entende-se cabalmente sua incapacidade de tirar verso do que quer que seja. Nem as lembranças lhes são mais suficientes. Você desdenha do vendedor de doce japonês, dos tocadores de alfaia do Bairro de São José. Você não cumprimenta mais Iemanjá, nem se veste com a guia de Xangô. Você ignora a fabulosa incerteza das coisas. Compreensível. Mas não, meu amigo, não se deixe entregue.

Vão lhe dizer que isso passa e que em certo tempo você voltará ao papel. Não responda, não aceite prazo. Sim, porque isso não passa. É você quem passará isso. E quando passar, você nem mais será você... Até lá não se incomode muito. Tristeza a gente esquece nos cantinhos. Entre as páginas cinqüenta um e cinqüenta e dois dos Manuscritos Econômico-filosóficos que você deixou na mesa da sala, por exemplo. Entre uma esquina e outra das ladeiras de Olinda. Entre novembro e dezembro.

Tristeza se desfaz nas coisas miúdas. Tudo bem que você está à espera do dia em que todos os poetas sairão às ruas e farão de automóveis versos, de asfalto, de presilha de cabelo, de vestido amarelo de Cecília, de pactos de paz, de lixo radioativo produzirão estrofes. Tudo bem que você aguarda grandiosidades, você é um poeta, mesmo o cotidiano é imenso e as joaninhas para você serão sempre asteróides. Mas a tristeza, ah meu amigo, a tristeza é discreta. Portanto, vá de calmaria. Caminhe, siga. E se lhe perguntarem o porquê de suas atuais ausências das palavras, você já sabe o que retorquir.

Diga-lhes que está a cozer horizontes e que conversa com os baobás sobre o materialismo histórico-dialético. Lembre-se, como que por nada, do fato de serem os baobás marxistas e de que você descobriu há pouco o cinema francês. Fale das novidades de Natália e de que agora você sabe bem onde fica a República Dominicana. Faça ar de estou-à-disposição e roube um beijo rapidamente. Não diga a verdade, mas também não minta. Dê um jeitinho daqueles seus, porque eu desconfio meu amigo, que isso já é poesia.

Thursday, October 18, 2007

Poemazinho irrisório sobre o tempo correspondente

Ela, aflita, inteira:
- Menino, menino! Saia dessa chuva!
Ele, de soslaio:
- Oxe. Mande ela sair de mim. Agora pronto!

Friday, October 12, 2007

Crônica sobre a máquina


Na Cidade Alta de Olinda, num casarão rosado na subida da Ribeira, os olhos cansados da militante socialista cuidavam da máquina e do tecido. Disse-me ela boa noite quase sem atenção. Estava devotada àquilo que fazia de tal maneira que minha presença naquela casa mais se parecia com um presságio.

Vestida com uma camisola clara, sentada num banco de madeira, apoiando os braços nas margens da mesa da cozinha, Ana Emília passeava linha e agulha entre os dedos. Mexia na máquina de costura como se pretendesse apressar setembro que, apesar da insistência do calendário em lhe contar as datas, teimava em não chegar.

A primeira máquina de costura que conheci era de minha avó materna, Dona Nilza, ou melhor, Vovó Nilza. Era uma máquina antiga, rodeada de mistérios. É que não tinha a máquina jeito de servir para costurar. Era um móvel de madeira envernizado semelhante a uma mesinha de cabeceira, um tanto mais alto apenas. Embaixo tinha uma parafernália de metal que, se nela qualquer menino colocasse os pés, balançava-se. Mas era proibido ali pôr os pés. Disso eu soube assim que comecei a brincar, certo dia, com a máquina: – Menino, não bula nisso que essa é a máquina de sua avó! Mas entender mesmo o porquê daquela mesa com um ferro que balança, mas que não pode ser balançado, ser uma máquina de costura, eu não entendia.

Encontrar Ana Emília entregue àquela máquina trouxe-me saudades. Talvez nem saiba ela, mas suas mãos naquela noite coseram mais que linha e pano. A militante costurou o tempo pela madrugada. Exercício árduo. Porque o tempo, em nome de quem costuma se pedir paciência, é um afoito, o danado. Quem quiser que lhe queira enlaçar agulhas de modo linear. Errará. Sinto. O tempo não se comporta assim. É por isso que os calendários não dão conta dele. Pelo mesmo motivo, não cabe aos relógios dele dizerem.

Tempo não se mede. Tempo não se acerta com ponteiros. Falam-nos uma mentira desde meninos: a de que o tempo se vê nos dias das semanas, nas horas, nos minutos e nos segundos – inclusive em seus milésimos – como em continhas de criança no ábaco do pré-escolar. Ilusão. O tempo não se enumera. O tempo tem menos a ver com cardinais e mais com cheiro de bolo no forno: - Cuidado para não queimar, Dona Maria! Tem menos a ver com dígitos e mais com o diâmetro do silêncio após o amor declarado: - Eu também te amo.

Acontecia de ser a máquina embutida. Ana Emília me trazia o mistério da máquina de Vovó às saudades na cozinha do casarão da Ribeira. Dentro da mesa de madeira envernizada havia uma máquina de costura. Num destravar de pequenos ferrolhos o tampão da mesa se abria e dava passagem a um aparelho preto com uma agulha enorme.

Ana Emília com suas linhas dobrava o tempo, fazia dele colchas, tapetes, vestidinhos de boneca, fantasias de carnaval. Lembro-me da descoberta fantástica do porquê daquele móvel ser uma máquina. Os olhos agudos de criança astuciosa a desvendar Vovó, vestida com uma camisolinha clara, sentadinha num banco de madeira, apoiando os braços frágeis nas margens da mesa que era a máquina voltavam-me com o manusear do tempo desvelado por Ana Emília.

Acordei daquela noite com uma chuva fina fazendo festa às pedras das ladeiras de Olinda. O arrebol vinha calmo, alegre e terno, rolando pelas ruas, entre os paralelepípedos. Não cheguei a ver Ana Emília. Deixei o casarão da Ribeira sem despedidas. Não encontrei também panos, linhas ou máquina. Dei-me apenas com o resultado da madrugada da militante socialista: Ana Emília, de tanto acarinhar o tempo, cosera-me uma manhã setembrina.

Para Ana Emília, militante do Movimento dos(as) Trabalhadores(as) Rurais Sem Terra.

Tuesday, August 28, 2007

Crônica sobre os horizontes


Agosto dá sinais de despedida na janela do quarto. Deixo-a bem aberta para digerir o seu fim nos dedos que afagam o teclado. A tarde está calma lá fora. As nuvens finas são como rastros esquecidos pelos últimos dias. Iansã mantém-se sentada, com pernas e saias a balançar, na linhazinha do horizonte, fazendo cafuné, com as pontinhas dos pés, nos cabelos de Iemanjá. Nem venta muito. O mar ainda está turvo por conta das últimas chuvas, a maré alta, mas lá no fundo já se percebe o azul desmantelando o tempo e querendo significar um rascunho da chegada de setembro.

Tudo se encaminha. O livro de Gramsci me espera na sala. Gustavo ainda não me mandou notícias da França. Meu pai assiste ao telejornal neoliberal no quarto. As desigualdades aumentam abismos no mundo, e, neste momento, morre mais um menino negro na periferia deste país. Dá para ouvir o apito do homem do doce japonês passeando pelas ruas de Candeias. É possível conhecer com cortesia as palavras que se espreitam na tentativa de vir ao papel. Ceumar toca na radiola. Sinto vontade de comer carolinas da Carmem.Tudo se encaminha.

Inclusive eu me encaminho, rendido, às letras, depois de alguns meses sem falar-lhes das coisas. E o faço para dizer a Ronaldo Monte que ele estava certo da injustiça que costumam cometer com agosto. É bem verdade que este mês antecipa meu inferno-astral – Goga entenderia melhor disso – e que Mariana destas semanas não sai livre de cicatrizes. Também é verdadeiro o fato de que esses ventos e essas tempestades e essas marés violentas bolem com os búzios de um modo que nenhum filho de Xangô é capaz de compreender. E que os coqueiros estão mais tortos, e que os dias foram mais cinzentos, e que os jambos não se agüentaram nos galhos. Mas, ao mesmo tempo, é bem verdade que agosto dá-se à feitura de horizontes a que nenhum outro mês é capaz de aludir.

Acontece quando Iansã e Iemanjá resolvem dançar maracatu. Iansã desce para dar um cheiro no rosto de Iemanjá e esta, mais velha, dá-lhe uns cascudos de brincadeirinha. Iansã balança as saias vermelhas com pressa e isso causa uma ventania incontrolável. Iemanjá, para não ficar para trás, mostra à mulher-menininha que entende demais de se sacudir. Remexe as águas e as ondas: as praias ficam todas nervosas com o alvoroço. No encalço de Iansã arrastam-se as nuvens carregando eletricidade. Pois é tanta tempestade e é tanto mar e tudo junto que os horizontes se desfazem todos e as orixás se põem a rir bem muito, achando graça dos homens e das mulheres que se perdem com suas traquinagens.

Perdidos, desprovidos de horizontes, os homens e as mulheres se lançam em novos caminhos e agosto assim vai se desenhando. Agosto, longe de ser desgosto, é uma procura, nem sempre cuidadosa procura, nem sempre resoluta procura, mas uma procura. Nos caminhos, os homens e as mulheres se deixam e se erguem, contradizem-se e arrematam-se, conhecem-se e desconhecem-se. Até que, cansados de tanta busca, percebem-se arcas de horizontes.

Isso é como andar um passo e sentir o horizonte se distanciar um passo. Ilusão que agosto desvela. Quando o rapaz caminha um passo não é o horizonte que se afasta do rapaz, é o rapaz que se afasta de quem era antes de percorrer o espaço-tempo do passo. O horizonte – e é por isso que se riem Iansã e Iemanjá largamente – não é um dado no mundo. O horizonte é um construto, é uma história, é ele mesmo dialético, como um sonho, como acordar de manhãzinha, como comer pão de queijo, como encontrar inesperadamente o primeiro amor da juventude. O horizonte, o sonho, o acordar, o comer e o encontro, todos se fazem ao tempo que nos fazem e nós nos fazemos ao tempo que os fazemos.

Carregamos, como imensas arcas, nossos horizontes. O que não pode ser, de maneira alguma, um ato solitário. É peso demais para um sujeito só. Meus horizontes são, neste momento, uma colorida colcha de retalhos de tantos outros. Tem aqui alguma coisa de Ana Lia, ali algo de Cecília, de Manuela, além um tanto de Rodrigo, outro tanto de Iara. Há nele até mesmo as cores deste agosto. Daí ser uma injustiça tremenda desgostar de agosto. Daí eu já olhar com saudade a tarde que se vai pela janela e o agosto que se recolhe para os cuidados do tempo. Daí, Rona, eu lhe entregar estas palavras já que as suas, sobre os ventos de agosto, não me saem d’alma.

E tudo se encaminha. O livro de Gramsci ainda me espera na sala. Manuela me chama para resolver alguma coisa sobre a viagem a João Pessoa da próxima semana. Meu pai fala ao telefone, trabalhando. As desigualdades aumentam abismos no mundo, e, neste momento, morre mais um menino negro na periferia deste país. Os carros se trocam com os passarinhos nas canções da tarde. Já não há mais palavras se espreitando na tentativa de vir ao papel. Ceumar ainda toca na radiola. Vou indo, comer carolinas da Carmem.Tudo se encaminha.

Para Ronaldo Monte de Almeida.

Monday, June 18, 2007

Fábula sobre a guerra


Começou quando a tristeza chegou ao coração do poeta. E nem era mesmo tristeza, era um rascunho, um ensaio, um sentimento anônimo a se alojar no pequenino espaço que há entre a cor das íris e a cor da alma. Não, não era palavra ainda. Era um impulso, algo amorfo, sem lugar no mundo que até então ali se fazia. Mas era tão grandiosa, a tristeza que nem era tristeza porque ainda não possuía nome, que as palavras todas estranharam sua presença.

Curiosas, foram todas elas, as palavras, ao encontro do novo sentimento. Buliçosas, mexeram muito com ele. A palavra-cortesia de pronto desejou ao recém-chegado as boas vindas. A palavra-sentido lhe cheirou o perfume, achando-o bastante parecido com aquele das margaridas em despedida da primavera. Lambeu-lhe, tateou-lhe, e embora tenha achado a sua pele macia, não aprovou o seu sabor. Trazia-lhe à memória o gosto de lágrimas silenciosas. A palavra-afeto resolveu conhecer com um abraço sincero aquele que se aproximava. A palavra-medo cutucou o desconhecido com a ponta do dedo indicador e, apesar da imobilidade do novato, refugiou-se rapidamente bem atrás da palavra-segurança.

Assim, foram todas as palavras, uma a uma, conhecer a tristeza que ainda nem era tristeza porque não possuía nome. A última da longa fila era a palavra-tempo. Sentou-se ela defronte do inominado e pacientemente esperou. Mas porque todas as outras palavras já estavam nervosas com tudo aquilo e a palavra-pressa lhe irritava um bocado, a palavra-tempo resolveu logo perguntar ao novo sentimento sobre sua história. Ele então falou de onde vinha. Disse de suas dores e da imensa desesperança que experimentava. Contou de lugares dos quais nunca se soube, de profundezas nunca dantes navegadas. E enquanto falava a tristeza que ainda nem era tristeza porque não possuía nome, como que por encantamento, deu-se à feitura da palavra.

Escreveu, dessa forma, o poeta seu primeiro verso triste. Verso este que veio seguido de outro, de mais outro e de mais tantos outros que todas as palavras passaram a se enciumar muitíssimo da palavra-tristeza. Ocorria que esta, mesmo que não escrita, diluía-se em tudo o que o poeta criava. Não havia texto seu em que ela, de um modo ou de outro, não tivesse participação. Eram crônicas e sonetos, ensaios e sextetos, canções e panfletos: em tudo se socorria à feitura da tristeza.

Organizaram-se então as palavras. Decidiram que iriam à tristeza dizer-lhe algumas boas verdades. A tristeza, sem quaisquer cuidados, entretanto, passou a tomar as palavras mais e mais para si. Devorando as palavras, sílaba por sílaba, letra por letra, cuspi-as todas através dos dedos do poeta que já não cessava a escrita. Assustadas, as palavras se puseram em fuga. Distanciaram-se largamente da tristeza. Organizaram-se mais uma vez. Foi aí que declararam todas as palavras, com todas as palavras, guerra à tristeza.

As palavras formaram de antemão, como estratégia, trincheiras tão resistentes e fortalezas tão impenetráveis nas paredes da alma do poeta que a tristeza, imensa, restou solitária no coração. O poeta, tomado pela tristeza e por palavras inacessíveis, calou-se. Por outro lado, ocorria que a tristeza, sem palavras que lhe servissem de alimento, estava impedida de contar sua história e, portanto, de se refazer. A tristeza ia ficando esquecida. Mas isso também se dava com as palavras. Sem escrever, o poeta se desfazia e, porque nem tristeza mais podia sentir, nem saudade sentia, nem nada, tornava-se ele indiferente às palavras.

Resolveram as palavras, porque era o jeito mesmo, que deveriam pactuar a paz com a tristeza. A palavra-teimosia não gostou da idéia, mas aceitou. Também teimava em não se propor a nada alternativo. As palavras todas se aproximaram por uma última vez da tristeza e lhe propuseram o anteriormente discutido. A tristeza não demorou: concordou com o pacto. Mas a palavra-desconfiança logo alertou para o fato de que a tristeza bem que poderia estar apenas a enganá-las e que melhor seria se houvesse uma testemunha para assegurar o acordo. Neste momento a palavra-lembrança citou o nome do poeta que logo foi aceito por todas as palavras e inclusive pela tristeza como legítimo interessado na questão.

Depois de muito, muito gritarem as palavras e a tristeza, o poeta veio ao seu encontro. Colheu as palavras e a tristeza entre as mãos carinhosamente e, nesse gesto, lhes testemunhou o ato que repartiu a poesia. Dali em diante, um pedaço da poesia que fazia o poeta cabia às palavras e a outra parte era de pertença da tristeza. Dali em diante, sempre que ele houvesse de escrever, colheria mais uma vez às mãos um tanto de palavras e um tanto de tristeza, em razão da feitura inteira da poesia e do seu próprio reencontro.

Por isso o samba não deixará nunca de ser triste. E a valsa, por mais que bela e alegre, nunca abandonará certo ar de tristeza. Foi assim que a palavra-guerra se fez na realidade. Todas as demais que lhe tentam imitar o sentido não têm qualquer razoabilidade. Contem o que quiserem os vitoriosos do Iraque, do Haiti ou de Oaxaca: são mentiras, desafetos, desrespeitos, desamores.

Uma única guerra bonita houve, entre as palavras todas e a tristeza. Dela não restou vencedor, também não restou vencido. Nasceu apenas o indizível sentimento existente no pequenino espaço que há entre a cor das íris e a cor da alma e que, desde então, faz de todo poeta um poeta. Sentimento este por ninguém, nem pelo tempo, jamais questionado em sua história. Permitiu-se ele ficar nas margens do não-dito e é dele que sobrevivem as raízes dos baobás.

Thursday, June 07, 2007

Crônica sobre o que, por vezes, resta ao escritor.


Por vezes, ao escritor resta apenas escrever. Enquanto ao carteiro restam as distâncias das cartas, as brincadeiras com a filha pequena no quintal de casa; enquanto ao médico restam as saudades da primeira paixão da juventude, a ausência dos corredores dos hospitais; enquanto ao operário restam os descansos do tijolo e do cimento, o samba da manhã de domingo; ao escritor, por vezes, resta, ausente, distante, cansado, apenas escrever.

Por vezes, ao escritor, que também é pai, que também tem filhas pequenas e quintais de casas, não há paternidade fora das palavras. Se ela – a filha – apresenta-se no teatrinho do colégio, se arruma o primeiro namorado, se entra na universidade, corre o escritor para a escrita e, nela, pare encenações, romances infantis e vitórias. Se ela – a filha – reprova em matemática, sofre com a primeira briga na escola, chora com o livro lido de Clarice, joga-se o escritor nos papéis e tira de lá números que componham versinhos e lhe caibam nas tristezas, pacificações de conflitos internacionais, lágrimas coloridas para a menina contar em porcentagens. No fim, por vezes, ao escritor resta apenas escrever.

Por vezes, ao escritor, que também se faz de endemias a curar, que também teve um primeiro amor de juventude e que, por favor, também sente saudades, nada acontece alheio às letras. Não há saúde ou doença, primeiro amor, primeira dor ou primeira solidão, juventude ou idade, saudade inevitavelmente – sem “ou” que lhe contrarie o haver – que tenham sentidos fora das palavras. Se ele ama – e sim, ele ama – e se ele sofre – sim, ele sofre – ama e sofre em linhas, sílabas, estrofes, frases, orações, sonetos: ama e sofre, duas vezes, deixando-se inteiramente em pequenas partículas de tinta preta, criando fabulosas estórias, dando vida a fantásticas personagens ou a infelizes textos com ares de ferida. Suas saudades, que para todos seriam maneiras de saudar os tempos, transformam-se em história. Suas despedidas, suas pessoas amadas que partem, fazem-se em diários. Dá-se que, não existindo para o escritor densa diferença entre real e imaginário, no fim, por vezes, ao escritor resta apenas escrever.

Por vezes, ao escritor, que também é um trabalhador, que também mantém ternuras para com as manhãs de domingo, que também cansa e samba, não há margem para o descanso. Se ele ama, ele escreve. Se ele sofre, ele escreve. Se ele educa a menina, ele escreve. Se ele deseduca o tempo, se sente saudades, ele escreve. O escritor, que por vezes apenas escreve, sempre escreve. Escreve como escravo. Conhece-se assim. Reconhece-se assaz. Mas não culpa as palavras. Mesmo consciente de que para tudo é um dependente delas, não as condena. Sabe-se escritor escravizado pelo mundo.

Sim, pelo mundo. Porque é o mundo que teima em lhe obrigar a criar. Mas se acha estranho, o escritor escravizado. Porque percebe, assim que acarinha a poesia, que só há mundo porque há quem dê sentido ao mundo. E percebe mais: compreendendo que o mundo só está sendo mundo na linguagem, entre as pessoas que lhe garantem sentidos, e que pode ele, o escritor, criar a palavra, é ele também que faz o mundo e que, portanto, cria quem lhe obriga a criar. Se ele ama, escreve, e mais ama e mais escreve. Se ele sofre, escreve, e mais sofre e mais escreve. Se ele educa a menina, deseduca o tempo, sente saudades: ele escreve e quanto mais escreve, mais educa a vida, mais deseduca as horas, as esperas, mais aumenta as saudades. Por isso não culpa as palavras. É cúmplice delas.

Por vezes, ao escritor resta apenas escrever. Se as palavras surgem arredias, se elas não encontram seus sentimentos, fere-se o escritor. Aí sim está sua crua tristeza: no desencontro dos sentimentos com as palavras. Sentir e não ser capaz de escrever. Aí sim, desfaz-se o homem. Numa prosa triste, numa poesia triste, não há tristeza de verdade. A tristeza afasta as palavras. A tristeza é solitária. Uma prosa triste, uma poesia triste, como esta crônica triste, acompanham-se sempre de esperanças. Não fosse assim, não haveria palavra, não haveria prosa ou poesia. Mesmo porque, no fim, resta, por vezes, ao escritor apenas escrever. E esse é o fim com mais jeito de início de todos os tempos.

Para Leonardo Souza, por me deixar ler suas coisas.

Tuesday, May 22, 2007

Ensaio sobre os “jovens carentes”. Ou melhor: ensaio sobre as palavras que carecem.


Este texto, que mal comecei a escrever, é uma resposta a um anúncio bem intencionado que li no boletim eletrônico do Diretório Acadêmico Demócrito de Souza Filho, a entidade representativa dos/as estudantes de direito da Universidade Federal de Pernambuco. Digo “bem intencionado” porque realmente o julgo assim: cheio de boas intenções. Sim, intenções de gente que acha que as coisas do jeito que estão não devem continuar. Gente que acredita que uma mudança é necessária, que enxerga a existência de uma exclusão gritante, uma injustiça tremenda no mundo e que o novo deve vir.

O anúncio falava de uma “capacitação” para as atividades de um projeto de extensão do Diretório, o SAJU – Serviço de Apoio Jurídico Universitário. A tal capacitação, em diversas temáticas do direito, serviria para o trabalho de estudantes junto a “jovens carentes” de escolas públicas.

As palavras nos pregam peças. De costume, dizem muito mais do que aparentam dizer. As palavras, e a linguagem como um todo, carregam sentidos, visões de mundo, relações de poder e ideologias dos quais nem nos damos conta. É nas palavras, na linguagem, que os homens, as mulheres se encontram. Só a partir delas, e do diálogo, os/as oprimidos(as) comungam e se libertam. Por outro lado, também é através delas – das palavras e da linguagem – que certos ideais são plantados na sociedade, naturalizados, tornados senso-comum. As palavras, que são condição de possibilidade para a libertação daqueles(as) que sofrem, muitas vezes servem se instrumento de dominação. Por isso, faz-se fundamental investigar as palavras, conhecê-las amiúde, amá-las mesmo, intimamente, ser afetuoso nelas e com elas, perceber-se nelas, sendo com elas alguém com o mundo e com os/as outros(as).

Quem é “carente”? Ou melhor: quem não é carente? Eu mesmo, neste instante, careço enormemente de um bom almoço. Mariana, uma amiga minha, carece de remédios para os rins. Dona Fátima, a senhora minha mãe, carece da presença deste que escreve, na sala, para que a ajude a carregar a mesa de vidro. Os/as moradores(as) das palafitas da comunidade periférica da Ilha do Destino carecem de uma política governamental que efetive o direito humano à habitação em respeito à dignidade da pessoa humana. No fundo, no fundo – e sinceramente – eu careço também de alguém que me chame de “meu-bem”. Os/as estudantes das escolas públicas também carecem de muito: bom material didático, verba para a educação, políticas públicas que respeitem suas diversidades e as afirmem, uma merenda melhor, ensino de qualidade etc.

Sempre que vejo alguém se referir a um determinado grupo de pessoas como “carentes”, assusto-me, não posso – nem devo – negar. Com tantas carências sobre a superfície terrestre e sob a primeira pele de nossas almas, por que, afinal de contas, determinar que este ou aquele grupo social é “carente”?

Normalmente esses “carentes” – aos quais se refere o senso-comum – são as pessoas pobres. Carência é falta. Às pessoas pobres faltam muitas, muitíssimas coisas, mas, sobretudo, de acordo com as necessidades impostas pelo pensamento hegemônico capitalista, falta-lhes dinheiro, capital. Ora, se falta aqui, é porque sobra ali. Às pessoas ricas, contrariamente às pobres, não falta capital. Detém elas, as pessoas ricas, inclusive, os meios de produção que aceleram o capital e geram o lucro através da mais valia. Esta, em lições - bem superficiais, diga-se de passagem – do ideário marxista com o qual coaduno, é a forma de exploração exercida por aqueles sujeitos que são proprietários dos meios de produção (as pessoas ricas) sobre aqueles outros sujeitos que não detém esses meios e que, por isso, sobrevivem cedendo sua força de trabalho (as pessoas pobres).

De acordo com o senso-comum dominado pelo pensamento hegemônico, portanto, “pessoas carentes” são os sujeitos sociais explorados, oprimidos. As pessoas pobres são carentes. As pessoas ricas não são carentes. Os/as oprimidos(as) são carentes. Mas e os opressores? Não, de acordo com o senso-comum dominado pelo pensamento hegemônico os opressores parecem não existir, afinal todo ser que existe carece, mas os ricos não são – de acordo com o tal senso-comum – “carentes”. Explico.

“Carente” é uma palavra que, como toda palavra, é capaz de nos pregar peças. E, sinceramente, tem pregado peças históricas no mundo em nome de alguns interesses. Se a gente diz que Fulano é pobre, pensa-se logo na sua oposição: o rico. Pessoas pobres são sujeitos sociais oprimidos, sem oportunidades, explorados. Se a gente diz que Beltrano é oprimido, pensa-se logo na sua oposição, o opressor. Mas e quando a gente diz que Sicrano é carente? Em que a gente pensa?

“Carente” foi um jeito singelo que acharam para não chamar o pobre de pobre. Acontece que falar que alguém é pobre parece ser indelicado. Mais: falar que alguém é pobre lembra diretamente que alguém é rico e fazer com que o povo pobre perceba a existência de classes em conflito pode ser bastante perigoso para alguns e algumas. A palavra “carente”, usada nesse sentido, é uma palavra-máscara. Isso, uma daquelas palavras que querem encobrir outras para disfarçar a realidade excludente.

“Carente” é aquele que precisa de caridade. O povo oprimido precisa de libertação. A caridade é doada por quem não é carente. A libertação é conquistada pelos homens oprimidos e mulheres oprimidas na luta social, na luta de classes, no enfrentamento com o mundo, na comunhão entre aqueles(as) que sofrem. Além do mais, a caridade e a libertação possuem uma diferença fundamental: a caridade mantém as coisas como estão, os/as caridosos(as) continuam caridosos(as) e os carentes continuam carentes, mas a libertação revoluciona. Com a libertação ninguém permanece, nem se torna, oprimido.

Há mais um elemento interessante por trás do fato de as pessoas pobres serem identificadas como carentes e de as pessoas ricas não o serem. Afinal, quais são as carências da classe social economicamente dominante? Do que esse sujeito histórico e político precisa para continuar a existir? O que não pode faltar aos homens ricos e às mulheres ricas para que eles e elas não deixem de ser ricos(as)? Arrisco dizer que para que os opressores continuem a existir como opressores é preciso que se mantenham as relações de opressão. Ou seja: é preciso que ricos(as) permaneçam ricos(as) e que pobres permaneçam pobres. E, para fazer disso tudo algo mais singelo, é também preciso de caridade para com os/as “carentes”.

Por esses motivos, com este texto que agora estou mal ou bem acabando de escrever, digo aos companheiros e às companheiras do Diretório Acadêmico Demócrito de Souza Filho, a entidade que me representa como estudante – e digo também a quem mais interessar – que os/as jovens com os/as quais vocês trabalharão não são “jovens carentes”. São mais, bem mais. São companheiros e companheiras, estudantes, com quem devemos fortalecer a luta social e, em comunhão, prosseguir rumo à libertação.

Faço questão de dizer essas palavras, que também podem me pregar peças, porque nós não podemos deixar nossas boas intenções serem levadas pelo pensamento hegemônico opressor. Tenhamos cuidado com as palavras. Não por medo. Tenhamos cuidado sim, mas por afeto. Insisto: faz-se fundamental investigar as palavras, conhecê-las amiúde, amá-las mesmo, intimamente, ser afetuoso nelas e com elas, perceber-se nelas, sendo com elas alguém com o mundo e com os/as outros(as).