Tuesday, August 28, 2007

Crônica sobre os horizontes


Agosto dá sinais de despedida na janela do quarto. Deixo-a bem aberta para digerir o seu fim nos dedos que afagam o teclado. A tarde está calma lá fora. As nuvens finas são como rastros esquecidos pelos últimos dias. Iansã mantém-se sentada, com pernas e saias a balançar, na linhazinha do horizonte, fazendo cafuné, com as pontinhas dos pés, nos cabelos de Iemanjá. Nem venta muito. O mar ainda está turvo por conta das últimas chuvas, a maré alta, mas lá no fundo já se percebe o azul desmantelando o tempo e querendo significar um rascunho da chegada de setembro.

Tudo se encaminha. O livro de Gramsci me espera na sala. Gustavo ainda não me mandou notícias da França. Meu pai assiste ao telejornal neoliberal no quarto. As desigualdades aumentam abismos no mundo, e, neste momento, morre mais um menino negro na periferia deste país. Dá para ouvir o apito do homem do doce japonês passeando pelas ruas de Candeias. É possível conhecer com cortesia as palavras que se espreitam na tentativa de vir ao papel. Ceumar toca na radiola. Sinto vontade de comer carolinas da Carmem.Tudo se encaminha.

Inclusive eu me encaminho, rendido, às letras, depois de alguns meses sem falar-lhes das coisas. E o faço para dizer a Ronaldo Monte que ele estava certo da injustiça que costumam cometer com agosto. É bem verdade que este mês antecipa meu inferno-astral – Goga entenderia melhor disso – e que Mariana destas semanas não sai livre de cicatrizes. Também é verdadeiro o fato de que esses ventos e essas tempestades e essas marés violentas bolem com os búzios de um modo que nenhum filho de Xangô é capaz de compreender. E que os coqueiros estão mais tortos, e que os dias foram mais cinzentos, e que os jambos não se agüentaram nos galhos. Mas, ao mesmo tempo, é bem verdade que agosto dá-se à feitura de horizontes a que nenhum outro mês é capaz de aludir.

Acontece quando Iansã e Iemanjá resolvem dançar maracatu. Iansã desce para dar um cheiro no rosto de Iemanjá e esta, mais velha, dá-lhe uns cascudos de brincadeirinha. Iansã balança as saias vermelhas com pressa e isso causa uma ventania incontrolável. Iemanjá, para não ficar para trás, mostra à mulher-menininha que entende demais de se sacudir. Remexe as águas e as ondas: as praias ficam todas nervosas com o alvoroço. No encalço de Iansã arrastam-se as nuvens carregando eletricidade. Pois é tanta tempestade e é tanto mar e tudo junto que os horizontes se desfazem todos e as orixás se põem a rir bem muito, achando graça dos homens e das mulheres que se perdem com suas traquinagens.

Perdidos, desprovidos de horizontes, os homens e as mulheres se lançam em novos caminhos e agosto assim vai se desenhando. Agosto, longe de ser desgosto, é uma procura, nem sempre cuidadosa procura, nem sempre resoluta procura, mas uma procura. Nos caminhos, os homens e as mulheres se deixam e se erguem, contradizem-se e arrematam-se, conhecem-se e desconhecem-se. Até que, cansados de tanta busca, percebem-se arcas de horizontes.

Isso é como andar um passo e sentir o horizonte se distanciar um passo. Ilusão que agosto desvela. Quando o rapaz caminha um passo não é o horizonte que se afasta do rapaz, é o rapaz que se afasta de quem era antes de percorrer o espaço-tempo do passo. O horizonte – e é por isso que se riem Iansã e Iemanjá largamente – não é um dado no mundo. O horizonte é um construto, é uma história, é ele mesmo dialético, como um sonho, como acordar de manhãzinha, como comer pão de queijo, como encontrar inesperadamente o primeiro amor da juventude. O horizonte, o sonho, o acordar, o comer e o encontro, todos se fazem ao tempo que nos fazem e nós nos fazemos ao tempo que os fazemos.

Carregamos, como imensas arcas, nossos horizontes. O que não pode ser, de maneira alguma, um ato solitário. É peso demais para um sujeito só. Meus horizontes são, neste momento, uma colorida colcha de retalhos de tantos outros. Tem aqui alguma coisa de Ana Lia, ali algo de Cecília, de Manuela, além um tanto de Rodrigo, outro tanto de Iara. Há nele até mesmo as cores deste agosto. Daí ser uma injustiça tremenda desgostar de agosto. Daí eu já olhar com saudade a tarde que se vai pela janela e o agosto que se recolhe para os cuidados do tempo. Daí, Rona, eu lhe entregar estas palavras já que as suas, sobre os ventos de agosto, não me saem d’alma.

E tudo se encaminha. O livro de Gramsci ainda me espera na sala. Manuela me chama para resolver alguma coisa sobre a viagem a João Pessoa da próxima semana. Meu pai fala ao telefone, trabalhando. As desigualdades aumentam abismos no mundo, e, neste momento, morre mais um menino negro na periferia deste país. Os carros se trocam com os passarinhos nas canções da tarde. Já não há mais palavras se espreitando na tentativa de vir ao papel. Ceumar ainda toca na radiola. Vou indo, comer carolinas da Carmem.Tudo se encaminha.

Para Ronaldo Monte de Almeida.

4 Comments:

At 12:48 PM, Anonymous Anonymous said...

lindo demais Betito. Concordo com vc, agosto está longe de significar desgosto. Eu gosto de agosto. Eu nasci no mês de agosto. e todo ano renasço e me refaço um pouquinho sob os ventos de agosto.
bjossssssssss

 
At 6:55 AM, Blogger Nata said...

Concordo com a Carol, Roberto: lindo!

Como diria Clarice Lispecor, "a vida tem o nosso tamanho". Agosto, assim como os outros meses e dias e minutos, tem o nosso peso.

Beijos

 
At 8:31 PM, Anonymous Anonymous said...

Beibe, voltei com meu blog. E voltei, portanto, a ler tb os blogs amigos. O seu, só com muita calma mesmo. Coisa que não tenho nesse momento... voltarei...

 
At 5:29 PM, Anonymous Anonymous said...

Gostei, mas foi especialmente significativo pra mim a ultima frqase.. "Tudo se encaminha"... é, pra mim tb...

 

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