Monday, April 16, 2007

Crônica sobre o inesquecível


Do jeito que eu tinha de olhar restaram silenciosos sorrisos e um certo ar de desolação. Talvez tenha restado também alguma solidão, que só existe – e insiste – porque não haveria poesia desprovida de um miúdo de tristeza. Do jeito que eu tinha de olhar ficou uma dor aguda, uma alegria esparramada, um mania teimosa de cuidar das superfícies e acariciar os profundos.

Agora, enquanto de soslaio encaro o tempo e suas vociferações, a cidade reclama com o passado. Não aceita ela o fato de se sentir coberta por ele. Não quer ela está sob ele quando a rosa se desmancha, murcha e os transeuntes recordam-na rósea, esguia, em primavera. Não admite ela estar suja dele quando os salões de baile se esvaziam de casais de dançarinos e a moça da limpeza é capaz de sentir com a vassoura a ausência da valsa que o chão desprende. Não compreende a cidade o jeito como ao olhar para uma esquina, ao passar por uma rua, ao entrar em uma porta, ela mesma dá lugar ao meu jeito de olhar o homem que amei naquela esquina, atravessando aquela rua, saindo por aquela porta. Não percebe a cidade que, ainda que sem querer, exala nossos amores. Manifesta ela momentos. Sente ela falta de si. A cidade sente saudade de si. Não percebe, ou percebe, e reclama com o passado interminavelmente.

Do jeito que eu tinha de olhar restaram compreensões que só tenho hoje porque hoje, da cidade, vejo no tempo – e em suas vociferações – o jeito que eu tinha de olhar. E nele, há muito. Acontece que não se enxerga a cidade com dois olhos apenas. Sim, é preciso de alma para enxergar a cidade. É preciso de tato, de toque, de paladar para enxergar. Mas mais do que isso: é fundamental que haja mais do que dois olhos para olhar a cidade. Justamente porque ninguém vê o mundo em solidão. A cidade, para ser conhecida, demanda companhia. Conhecer, apreender, requer, além de tempo, compartilhamento.

O cavalheiro se desloca no salão e desvenda seus mistérios enquanto troca passos com a dama. A rosa se faz e refaz inesquecível no cheiro da pessoa amada. Esquinas, ruas e portas comportam-se em forma de lembranças porque em esquinas, ruas e portas ele estava e eu o amava. Não houvesse um outro ele brincado com os versinhos da canção de Chico no ouvido dela, o espaço-tempo existente entre uma palavrinha e outra da canção desfar-se-ia de sentido para Mariana. A cidade só se dá no tempo e apenas se permite conhecer na ação de homens e mulheres através dele. A cidade reclama com o passado como o verso decassílabo reclama da métrica. Não fossem o passado e as marcas que lhe deixamos em atos de partilha, a cidade se perderia em suas próprias avenidas e calçadas. Não fosse a métrica, a rígida forma, o verso decassílabo perderia toda a poesia que há em sua ânsia por ser livre.

A cidade, suja de passado, ganha marcas do inesquecível. Estas se desenham com tintas de aquarelas de cores despetaladas também chamadas de saudade. Assim que os homens e as mulheres com elas pintam, deixam um bocado de si. E é exatamente esse bocado a matéria que marca, de inesquecível, salões de baile, jardins de rosas, ruas, esquinas e portas, versinhos de canções de Chico. A mistura dos bocados constrói a cidade que, pensando que se encobre de passado, realiza-se verdadeiramente a partir dele.

Do jeito que eu tinha de olhar restaram bonitas vontades de ver meus olhos encobertos por outros. Sim, porque ainda que reclamemos e acusemos olhares alheios de responsáveis por nossas cegueiras, é apenas quando nos damos os olhos a enxergar sob outros olhos que nossos olhares se realizam. A cidade repleta de passado, nossos olhos repletos de olhares e um bocado de nós sempre a fazer pedaços do mundo e do tempo inesquecíveis.

2 Comments:

At 10:17 AM, Anonymous Anonymous said...

Ela faz cinema ou ciências?!

;-)

 
At 5:47 AM, Anonymous Anonymous said...

pedaços do mundo e do tempo inesquecíveis...lindo lindo!!! bjo :)

 

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