Tuesday, March 13, 2007

Crônica sobre o silêncio

Para um homem dado à feitura das palavras, o silêncio poderia, de antemão, parecer estranho. Assim como soaria antagônica, em tese, a conjunção de letrinhas que gera o vocábulo responsável pela sua própria ausência. Dá-se, no entanto, que o silêncio não silencia. É bem provável que, segundo o senso comum, não imita sons, não principie a música, torne inoportuna a poesia. Mas não, insisto, ele não silencia. Isso porque há palavras só pronunciáveis em silêncio. Da mesma maneira, existem passos, valsas, notas e instrumentos musicais, sambas e tocares de mãos que só se permitem dançar no silêncio. Há versos recitáveis sem que a boca desenvolva qualquer movimento.

Um homem dado à feitura das palavras não poderia se furtar à feitura do silêncio. O fizesse, correria o risco de se manter distante da cumplicidade. É que poucas coisas dizem tanto da cumplicidade quanto o silêncio. É como quando estou, nas longas distâncias em que percorremos juntos, ao lado de Mariana no carro. Há sempre um momento em que ambos se calam. Depois de tudo o que é dito, das trocas de palavras, umas arredias, outras dóceis, umas mansas, outras ariscas, o silêncio se contempla. E fica ali – quase tangível – entre o homem e a mulher, recebendo-o e recebendo-a como quem conforta e fala de liberdade.

Sim, liberdade. Porque a partir do silêncio cada uma das almas ganha, livre, asas e paira sobre outros terrenos. Por mais que minha atenção seja chamada pelo trânsito, pela estrada, resta ali mais corpo e menos homem. Restam, em verdade, dois corpos frágeis e desatenciosos, entregues um aos cuidados do outro, um à fidelidade do outro. Mas são corpos apenas. Mariana e Roberto, ela mesmo e ele mesmo, abandonados um ao outro, já nem mais existem no automóvel. Visitam memórias, sentem alegrias e tristezas, pensam no trabalho, nas leituras, nas atividades do movimento. Por vezes até percebo, durante o silêncio, Mariana sorrindo singelamente. Estar livres ao mundo não faz deles – de Mariana e Roberto – todavia, desvinculados. Pelo contrário: livres são na confiança de um na ausência presente do outro, porque há uma fé incontestável no outro que, às vezes, ela e ele chamam de amizade.

No amor, percebe-se que o silêncio não se confunde com a solidão. O silêncio existe mediante a espera. A solidão é tão sozinha que já não espera nada de ninguém. Nas folhas que o poeta carrega, ainda que nelas não haja quaisquer palavras, há entre eles – o poeta e as folhas – uma potencialidade. Espera-se – e isso é uma esperança – que do silêncio brote poesia. Entre a musicista com seu violino e o violino da musicista, há a mesma relação. O silêncio de ambos, um defronte o outro, é a espera de um pelo outro em razão da canção. Assim como acontece com o moço apaixonado que aguarda ansiosamente que o telefone toque enquanto o aparelho não imite uma vibração sequer. Ligue ou não ligue a pessoa tão desejada, corresponda ou não ela ao sentimento que move o moço à espera, daquele silêncio viverá algo, seja esse algo uma ida à roda gigante da cidadezinha do interior para comer maçã caramelada, seja ele uma lágrima.

A solidão, por sua vez, é uma desesperança só. E por mais que seja ela fundamental a certas pessoas, deve ser passageira. Parece saudável que seja desse modo. A solidão não silencia. A solidão devora. É por esse motivo que os homens e as mulheres que sonham e se libertam, os fazem em comunhão, nunca sozinhos ou sozinhas. É também por esse motivo que não devemos machucar o silêncio, perverter-lhe seus mistérios, desrespeitar-lhe os sabores. O silêncio é sagrado, faz-se como uma prece. Não é por acaso que alguns religiosos prefiram orar em silêncio, uns ao lado dos outros. Religião vem do latim religare: retomar-se em si e nas divindades, mas com os outros.

O silêncio, como a palavra, é compartilhamento, manifestação da linguagem. Erra quem julga que o silêncio não fala. Há por um acaso mais a dizer depois de um eu-te-amo sem resposta proferida, quando tudo que se quer ao dizer eu-te-amo é ouvir eu-te-amo em troca? Quem ama e diz e quem não ama e cala falam um ao outro, sem exceção. Está lá tudo o que precisa ser comunicado. A partir de então – e só a partir de então – vem a solidão. Não havendo mais o que ser dito, em som ou em silêncio, não há mais o que esperar. Por isso, é imprescindível compreender o silêncio. Não que essa compreensão evite a dor. O fato de eu ler um soneto de Vinícius não me faz menos ou mais preparado para amar e não ser amado. Mas simplesmente para nutrir coragem no lidar com a sinceridade. A sinceridade, em certas ocasiões, também silencia.

Gosto mesmo, entretanto, eu preciso confessar, do silêncio posterior ao beijo. Daquele silêncio que só se cumplicia no instante seguinte à despedida dos lábios. Quando não há palavra que descreva, quando não há eu-te-amo dito que baste, quando só o silêncio ocupa os espaços entre os olhos. Gosto mesmo, eu preciso confessar, do silêncio posterior à feitura do amor, quando os corpos – e quem sabe as almas – se despedem, deixando-se um no outro, uma na outra. Gosto mesmo, eu preciso confessar, do silêncio posterior à criação da palavra, do texto, da crônica, do afeto. Quando quem escreve começa a sentir saudade das letrinhas que deitou nas linhas. Quando quem lê toma aquilo como seu. Gosto mesmo, eu preciso confessar, do silêncio que, depois do grito, transforma a indignação em consciência e a consciência coletiva em revolução. Quando, no silêncio e na palavra, a esperança se refaz.

Para Mariana Azevedo, pelos nossos caminhos a Candeias.

7 Comments:

At 2:34 PM, Anonymous Anonymous said...

roberto! nem sei como vim parar aqui, mas o destino é algo mesmo sublime em seus acasos e desencontros, não?! o que poderia dizer acerca da crônica sobre o silêncio? parabenizar-te seria pouco perante a poesia emanada de tão singelo e despretensioso emaranhado de "letrinhas". E por não encontrar, agora, palavras que me transponham o sentimento, silencio.

 
At 5:48 AM, Anonymous Anonymous said...

Beto, que texto lindo. Esse se superou. Realmente! bjo :)

 
At 8:21 AM, Blogger Joannah Luna said...

Um dia em silêncio,ouvi umas letrinhas quem tocavam também em silêncio uma linda melodia cheia de sentimentos em meus olhos... Parecia um vazio, mas não era. Enquanto em meu silencio eu apreciava o som do silencio dele, muitas coisas aconteciam ao meu redor...
As letrinhas eram de Itamar Assumpção e diziam assim:
"Quando estou longe, quero ficar perto.
Quando estou perto, quero ficar dentro.
Quando estou dentro quero ficar mudo.
Quando estou mudo, quero dizer tudo!

Pois é oinho, de fato o silêncio jamais silencia, q o diga o silêncio de nossa conversa no MSN e o silêncio desse momento em que acabei de ler em silêncio e aqui estou a dizer o q senti calada!

Lindo... =)))

=****

 
At 3:45 PM, Anonymous Anonymous said...

que muito bom, beto!

xero!

 
At 3:21 PM, Anonymous Anonymous said...

Beto

Dentro de um grande emaranhado de sentimentos o silêncio é o único capaz de expressar todas as verdades.
Para um homem que vive das palavras é difícil encontrar o silêncio. Mas é neste que descubro o sentido e a explicação para situações sem fins.
Meu filho, seu texto é de um profundo silêncio e este falou muito alto dento do meu ser. Parabéns. Você é um barulhento silencioso muito lindo.

 
At 11:06 PM, Anonymous Anonymous said...

Texto perfeito!
Para haver música - é necessário o silêncio, é justo ele quem cria o ritmo.

 
At 8:04 PM, Anonymous Anonymous said...

Li uma vez: o silêncio não é ausência, é a presença inconciliável de todas as palavras.

 

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