Wednesday, March 07, 2007

Crônica sobre o entre

Entre o menino que olha e o horizonte há algo que é maior que o menino, incabível no horizonte. Entre as letras destas palavras, mesmo entre as próprias palavras e o papel, há uma substância intocável e silenciosa que por vezes se pretende poesia. Sabe-se de sua existência como de um segredo. Entre a voz dos trovões de Xangô e os raios das tempestades de Oyá há uma energia inominável, da mesma áurea dos fins vermelhos das tardes de Candeias.

Entre a carta escrita e o moço apaixonado há uma cumplicidade esperançosa, uma espera por resposta, um saltitante temor de sua ausência. Entre a burguesia e o povo há a dominação, mas há de haver a luta de classes, a libertação. Entre as mulheres, entre os homens, há a linguagem. Entre deus e o diabo há um deixa - quieto. Entre as mãos das crianças dançando ciranda há suor. Mas há mais: há ritmo entre as mãos das crianças cirandeiras. Entre o código e o Poder Judiciário há uma triste cegueira para a realidade. Entre amigos, entre amigas, há irmandade. Entre irmãos, irmãs há uma árvore genealógica.

Entre o cabra que paquera e aquele que é paquerado há investimento. Entre o charque e a macaxeira há óleo, o Mercado da Madalena, tradição, sertão. Entre o sertão e a zona da mata há jovenzinhos cortando cana, latifúndios. Entre os latifúndios e a ordem das coisas há o Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais Sem Terra. Entre Mainha e minha janta há a padaria. Ela ficou de comprar o pão. Entre a massa e o fogo há fermento. Entre o ponto final e o início da oração seguinte há uma inexplicável ânsia por parágrafos. Entre o passado e o presente há uma gestalt em fechamento. Entre o presente e o futuro há o desejo de escrever um livro. Entre o presente e o agora há uma dádiva.

Entre as teclas e os dedos há a descoberta da palavra, criação. Entre os homens oprimidos e as mulheres oprimidas na busca por sua emancipação há diálogo. Entre quem desenha letrinhas no escuro, à noite, com a cabeça no travesseiro e quem deita as letrinhas no texto há certa coragem. Entre a saudade e a distância há dor, tempo. Entre os ponteiros do relógio há versos decassílabos. Entre a atriz e o espectador há o palco, o fantástico, o aplauso. Entre o médico e a paciente há confiança. Entre o parlamentar e o votante há pretensão de representatividade. Entre o santo e a beata há fé. Entre o bem e o mal há um tango argentino. Mas entre o amor e a tristeza há um samba inexoravelmente. Entre esta alma e o baobá há proteção.

Entre o sujeito e o predicado há o verbo, a ação. Entre a tapioca e o coco: queijo coalho. Entre o sonho e a realização há a coletividade. Entre a lua cheia e o mar há Iemanjá. Entre a embalagem e o pão de queijo há polvilho. Entre o cinema e o filme há pipoca. Entre este eu e todos os outros há múltiplas personalidades. Entre a canção e o violão há cifras. Entre as estrofes, não há nada necessariamente, há tudo sempre.

Há sempre algo que não sou eu, que não é você, que nos é inteiriços e por partes, sendo maior que nossa soma, entre nós dois. Há sempre algo que só existe porque nós existimos, mas que a partir de nosso encontro, do toque, da descoberta, do compartilhamento, ganha vida própria, evoca sentimentos, faz dançar os sorrisos e as divindades. Há sempre um segredo, um sussurro, um tilintar no meio da noite, um sol se retirando, uma porta entreaberta. É como o beijo. Há sempre mais que duas bocas, diferentes amilases salivares, duas línguas. Há o beijo propriamente, o beijo que está sendo, que faz falta, que – claro – só existe porque a ele nos dispusemos, mas que transborda. O beijo transborda as margens de Oxum, nossas propriedades sobre ele. O beijo não tem donos, arrendatários, hipotecários. O beijo é mais do que seus criadores, mais do que criatura.

Há um sentimento de mundo entre o que é vivo, entre o que requer, entre o que cria poesia. Há um vínculo para além da participação fundamental de cada um considerado individualmente. Há um amor que só se explica nas simbioses, que supera as particulares necessidades. Há entre nós – o povo, as gentes – algo que necessita, que se interessa, que sente, que grita, que luta, que liberta. Há entre nós a ânsia pela coletividade. Há entre nós um ser que só é porque está sendo entre pessoas, entre mundos, entre sentires, entre versos. Há esperança nas entrelinhas.

2 Comments:

At 5:59 AM, Blogger Arnaldo Vieira said...

entre você e as palavras há uma intimidade de amantes...
abraços, beto!

 
At 11:00 PM, Anonymous Anonymous said...

"Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio."

Clarice Lispector

[porque lembrei desse texto]

 

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