Sunday, February 25, 2007

Crônica sobre os sorrisos


Ornela olhou, julgou e prontamente palavreou: o sorriso de Roberto está borboletografando. Dizia isso e bulia no ar com as brancas mãos e os finos braços erguidos. Parecia desenhar – no ar em que bulia – os caminhos das asas das borboletas. Aqueles atos e aquelas palavras, naquela noite de quarta-feira de cinzas, tinham muito jeito de poesia. Ornela, a militante da assessoria jurídica popular, criava a palavra.

Há algum tempo os sorrisos fazem parte de meu imaginário. Ao lado dos abraços e dos dizeres, dos olhares e dos sentires, dos baobás e das tardes setembrinas, os sorrisos se apropriam de parte significativa daqueles meus pensamentos mais carinhosos. Ocorre que os sorrisos – ação e idéia – acarinham o mundo livremente. Se a voz é, como diria Helder, uma expansão da alma, o sorriso é o modo como ela se espreguiça. Mas não se trata daquele espreguiçar cansado, letárgico, morto. Falo daquele espreguiçar das manhãzinhas, depois de desejar bom dia à alvorada, daquela preguicinha gostosa de ser feliz, da vontade de restar mais cinco minutinhos no colo de Morfeu. O sorriso é o jeito bonitinho de os sentimentos se sentirem à vontade. Nele fica tudo em cima da mesa, à mostra, em panos limpos. É por isso que os burgueses deveriam ter muito medo do sorriso dos povos: vai que eles juntos se encontram à vontade para o sonho!

Faz meses que penso sobre os sorrisos. De antemão foi por causa de Rodolfo, não posso – nem devo – negar. Apanhei-me, em meio a uma conversa, achando que havia sorrido como ele, daquele jeito que ele faz, mostrando bem muito os dentes de cima, fechando o olho esquerdo e mexendo os ombros pra cima e pra baixo. Fiquei preocupado, não posso – nem devo – negar. E tal preocupação me rendeu tempos e tempos, daqueles que não se contam com os relógios, pensando sobre o fato. Até que cheguei à conclusão de que esse fenômeno diz respeito à congruência dos sorrisos. Toda alma tem seu modus-espreguiçandi, seu feitio para deixar os sentimentos afoitos, mas porque nenhuma alma é alma em si, porque almas só são almas com outras almas e porque isso, para além de teoria da linguagem, é poesia, nada mais esperado que no momento da preguiça haja um encontro de almas. É assim que eu ando sorrindo com olhos de peixe morto e o bocão bem à mostra, como Cecília. Também é por isso que tenho sorrido com os dentes de cima e de baixo todos bem expostos, ao gosto de Aristóteles. Não posso esquecer nunquinha dos sorrisos de boca miúda de Mariana. A congruência dos sorrisos quer dizer que, além do carinho que por si só os sorrisos fazem ao mundo, há um acarinhar que só se dá porque o mundo só está sendo mundo entre sorrisos. Coisas assim, são como dizer eu-te-amo logo ao acordar.

A afirmação de Ornela, segundo a qual meu sorriso borboletografava, trouxe-me novos pensamentos. A palavra da militante me conduzia em aventuras silenciosas e coloridas nas espreguiçadeiras de minha própria alma vermelha. Borboletografar é uma soma de borboletas e grafias. O verbo não deixa certos, no entanto, o sujeito e o predicado. São as borboletas que escrevem os sorrisos? São os sorrisos que palavreiam as borboletas? A grafia é palavra simplesmente? Pode ser desenho, imagem, som, paisagem?

De tanto e amiúde acarinhar meus pensamentos com essas e outras vastas interrogações cheguei a uma segunda conclusão, de certo modo próxima daquela sobre a congruência dos sorrisos. A borboletografia nasce com um pequeno rebuliço no pé da barriga, remexe todo o corpo e desestabiliza sentimentos, harmoniza o sujeito com um estado de coisas inominável mas que se parece muito com um céu de carneirinhos numa tarde da Várzea. Depois de nascida, a borboletografia dança com a palavra. Daí em diante não se sabe mais quem dá vida a quem. Em alguns instantes as palavras vivificam borboletas, noutros as borboletas geram palavras. As borboletas e as palavras se desenham mutuamente, escrevem-se umas nas peles das outras, enraízam-se em nossos corações. É aqui que a alma se sente à vontade com seus sentimentos e se espreguiça plenamente. É aqui que o sorriso se reflete no ar bulido pelas mãos de Ornela na noite da quarta-feira de cinzas. Coisas assim, são como dizer eu-te-amo logo antes de sonhar.

A borboletografia não se desenvolve, é preciso que se afirme, entretanto, em solidão. E é por isso, exatamente, que a congruência de sorrisos lhe é tão próxima e fundamental. As mãos de Ornela desenhando no ar meu sorriso e suas borboletas, remetiam-me imprescindivelmente a um outro sorriso. Naquele espaço-tempo acontecia de todas aquelas borboletas que me invadiam a alma vindas do rebuliço original, levarem-me as espreguiçadeiras todas ao encontro do sorriso de um moço pouco conhecido, de pequenos encontros, de alguns dias apenas – embora nesse caso o tempo também não se conte em ponteiros ou relógios – mas que me punha esperanças e asas coloridas nas cinzas da quarta-feira. A borboletografia dava às congruências sorrisos tocados em meio ao carnaval.

Insisto: é por isso que os burgueses deveriam ter muito medo do sorriso dos povos: vai que eles juntos se encontram à vontade para o sonho! Vai que as gentes descobrem que borboletas são capazes de transportar sorrisos e almas a se espreguiçar. Vai que os homens e as mulheres compreendem que a boniteza pode ser democratizada. Correriam muitos riscos os burgueses se as borboletografias fossem ensinadas nos livros colegiais.

Ornela olhou, julgou e prontamente palavreou: o sorriso de Roberto está borboletografando. Tudo bem, Ornela: a poesia quer ficar sorrindo. Que seja entre asas, portanto.

Para Tiago Duraes, por ter me perguntado – imprescindivelmente - se nachos eram um prato italiano.

2 Comments:

At 5:40 AM, Anonymous Anonymous said...

Rebuliçou minha barriga com borboletas amarelas e fez mais preguiça no meu sorriso.

saudade.

beijos de cá.

 
At 5:31 PM, Blogger Juliano said...

Rapaz. A imagem do barco é perfeita.

Me senti levado pelo teu texto como se uma nuvem de borboletas fosse me acarinhando e me levando ao mesmo tempo...

:)

 

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