Thursday, June 07, 2007

Crônica sobre o que, por vezes, resta ao escritor.


Por vezes, ao escritor resta apenas escrever. Enquanto ao carteiro restam as distâncias das cartas, as brincadeiras com a filha pequena no quintal de casa; enquanto ao médico restam as saudades da primeira paixão da juventude, a ausência dos corredores dos hospitais; enquanto ao operário restam os descansos do tijolo e do cimento, o samba da manhã de domingo; ao escritor, por vezes, resta, ausente, distante, cansado, apenas escrever.

Por vezes, ao escritor, que também é pai, que também tem filhas pequenas e quintais de casas, não há paternidade fora das palavras. Se ela – a filha – apresenta-se no teatrinho do colégio, se arruma o primeiro namorado, se entra na universidade, corre o escritor para a escrita e, nela, pare encenações, romances infantis e vitórias. Se ela – a filha – reprova em matemática, sofre com a primeira briga na escola, chora com o livro lido de Clarice, joga-se o escritor nos papéis e tira de lá números que componham versinhos e lhe caibam nas tristezas, pacificações de conflitos internacionais, lágrimas coloridas para a menina contar em porcentagens. No fim, por vezes, ao escritor resta apenas escrever.

Por vezes, ao escritor, que também se faz de endemias a curar, que também teve um primeiro amor de juventude e que, por favor, também sente saudades, nada acontece alheio às letras. Não há saúde ou doença, primeiro amor, primeira dor ou primeira solidão, juventude ou idade, saudade inevitavelmente – sem “ou” que lhe contrarie o haver – que tenham sentidos fora das palavras. Se ele ama – e sim, ele ama – e se ele sofre – sim, ele sofre – ama e sofre em linhas, sílabas, estrofes, frases, orações, sonetos: ama e sofre, duas vezes, deixando-se inteiramente em pequenas partículas de tinta preta, criando fabulosas estórias, dando vida a fantásticas personagens ou a infelizes textos com ares de ferida. Suas saudades, que para todos seriam maneiras de saudar os tempos, transformam-se em história. Suas despedidas, suas pessoas amadas que partem, fazem-se em diários. Dá-se que, não existindo para o escritor densa diferença entre real e imaginário, no fim, por vezes, ao escritor resta apenas escrever.

Por vezes, ao escritor, que também é um trabalhador, que também mantém ternuras para com as manhãs de domingo, que também cansa e samba, não há margem para o descanso. Se ele ama, ele escreve. Se ele sofre, ele escreve. Se ele educa a menina, ele escreve. Se ele deseduca o tempo, se sente saudades, ele escreve. O escritor, que por vezes apenas escreve, sempre escreve. Escreve como escravo. Conhece-se assim. Reconhece-se assaz. Mas não culpa as palavras. Mesmo consciente de que para tudo é um dependente delas, não as condena. Sabe-se escritor escravizado pelo mundo.

Sim, pelo mundo. Porque é o mundo que teima em lhe obrigar a criar. Mas se acha estranho, o escritor escravizado. Porque percebe, assim que acarinha a poesia, que só há mundo porque há quem dê sentido ao mundo. E percebe mais: compreendendo que o mundo só está sendo mundo na linguagem, entre as pessoas que lhe garantem sentidos, e que pode ele, o escritor, criar a palavra, é ele também que faz o mundo e que, portanto, cria quem lhe obriga a criar. Se ele ama, escreve, e mais ama e mais escreve. Se ele sofre, escreve, e mais sofre e mais escreve. Se ele educa a menina, deseduca o tempo, sente saudades: ele escreve e quanto mais escreve, mais educa a vida, mais deseduca as horas, as esperas, mais aumenta as saudades. Por isso não culpa as palavras. É cúmplice delas.

Por vezes, ao escritor resta apenas escrever. Se as palavras surgem arredias, se elas não encontram seus sentimentos, fere-se o escritor. Aí sim está sua crua tristeza: no desencontro dos sentimentos com as palavras. Sentir e não ser capaz de escrever. Aí sim, desfaz-se o homem. Numa prosa triste, numa poesia triste, não há tristeza de verdade. A tristeza afasta as palavras. A tristeza é solitária. Uma prosa triste, uma poesia triste, como esta crônica triste, acompanham-se sempre de esperanças. Não fosse assim, não haveria palavra, não haveria prosa ou poesia. Mesmo porque, no fim, resta, por vezes, ao escritor apenas escrever. E esse é o fim com mais jeito de início de todos os tempos.

Para Leonardo Souza, por me deixar ler suas coisas.

2 Comments:

At 4:03 PM, Blogger Leo Souza said...

será que além de nao saber escrever sobre saudades, agora também manqueio nas palavras de agradecimento? obrigado basta? nao sei. merecia mais. por enquanto, meu mutiíssimo obrigado por ainda ler meus textos, desde tempos atrás...

 
At 12:34 PM, Blogger Natacha Orestes said...

se é o que nos resta, e se isso nos presta, sigamos então...

que isso, meu caro, não há de ser pouco, não.

nat

 

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