Tuesday, May 22, 2007

Ensaio sobre os “jovens carentes”. Ou melhor: ensaio sobre as palavras que carecem.


Este texto, que mal comecei a escrever, é uma resposta a um anúncio bem intencionado que li no boletim eletrônico do Diretório Acadêmico Demócrito de Souza Filho, a entidade representativa dos/as estudantes de direito da Universidade Federal de Pernambuco. Digo “bem intencionado” porque realmente o julgo assim: cheio de boas intenções. Sim, intenções de gente que acha que as coisas do jeito que estão não devem continuar. Gente que acredita que uma mudança é necessária, que enxerga a existência de uma exclusão gritante, uma injustiça tremenda no mundo e que o novo deve vir.

O anúncio falava de uma “capacitação” para as atividades de um projeto de extensão do Diretório, o SAJU – Serviço de Apoio Jurídico Universitário. A tal capacitação, em diversas temáticas do direito, serviria para o trabalho de estudantes junto a “jovens carentes” de escolas públicas.

As palavras nos pregam peças. De costume, dizem muito mais do que aparentam dizer. As palavras, e a linguagem como um todo, carregam sentidos, visões de mundo, relações de poder e ideologias dos quais nem nos damos conta. É nas palavras, na linguagem, que os homens, as mulheres se encontram. Só a partir delas, e do diálogo, os/as oprimidos(as) comungam e se libertam. Por outro lado, também é através delas – das palavras e da linguagem – que certos ideais são plantados na sociedade, naturalizados, tornados senso-comum. As palavras, que são condição de possibilidade para a libertação daqueles(as) que sofrem, muitas vezes servem se instrumento de dominação. Por isso, faz-se fundamental investigar as palavras, conhecê-las amiúde, amá-las mesmo, intimamente, ser afetuoso nelas e com elas, perceber-se nelas, sendo com elas alguém com o mundo e com os/as outros(as).

Quem é “carente”? Ou melhor: quem não é carente? Eu mesmo, neste instante, careço enormemente de um bom almoço. Mariana, uma amiga minha, carece de remédios para os rins. Dona Fátima, a senhora minha mãe, carece da presença deste que escreve, na sala, para que a ajude a carregar a mesa de vidro. Os/as moradores(as) das palafitas da comunidade periférica da Ilha do Destino carecem de uma política governamental que efetive o direito humano à habitação em respeito à dignidade da pessoa humana. No fundo, no fundo – e sinceramente – eu careço também de alguém que me chame de “meu-bem”. Os/as estudantes das escolas públicas também carecem de muito: bom material didático, verba para a educação, políticas públicas que respeitem suas diversidades e as afirmem, uma merenda melhor, ensino de qualidade etc.

Sempre que vejo alguém se referir a um determinado grupo de pessoas como “carentes”, assusto-me, não posso – nem devo – negar. Com tantas carências sobre a superfície terrestre e sob a primeira pele de nossas almas, por que, afinal de contas, determinar que este ou aquele grupo social é “carente”?

Normalmente esses “carentes” – aos quais se refere o senso-comum – são as pessoas pobres. Carência é falta. Às pessoas pobres faltam muitas, muitíssimas coisas, mas, sobretudo, de acordo com as necessidades impostas pelo pensamento hegemônico capitalista, falta-lhes dinheiro, capital. Ora, se falta aqui, é porque sobra ali. Às pessoas ricas, contrariamente às pobres, não falta capital. Detém elas, as pessoas ricas, inclusive, os meios de produção que aceleram o capital e geram o lucro através da mais valia. Esta, em lições - bem superficiais, diga-se de passagem – do ideário marxista com o qual coaduno, é a forma de exploração exercida por aqueles sujeitos que são proprietários dos meios de produção (as pessoas ricas) sobre aqueles outros sujeitos que não detém esses meios e que, por isso, sobrevivem cedendo sua força de trabalho (as pessoas pobres).

De acordo com o senso-comum dominado pelo pensamento hegemônico, portanto, “pessoas carentes” são os sujeitos sociais explorados, oprimidos. As pessoas pobres são carentes. As pessoas ricas não são carentes. Os/as oprimidos(as) são carentes. Mas e os opressores? Não, de acordo com o senso-comum dominado pelo pensamento hegemônico os opressores parecem não existir, afinal todo ser que existe carece, mas os ricos não são – de acordo com o tal senso-comum – “carentes”. Explico.

“Carente” é uma palavra que, como toda palavra, é capaz de nos pregar peças. E, sinceramente, tem pregado peças históricas no mundo em nome de alguns interesses. Se a gente diz que Fulano é pobre, pensa-se logo na sua oposição: o rico. Pessoas pobres são sujeitos sociais oprimidos, sem oportunidades, explorados. Se a gente diz que Beltrano é oprimido, pensa-se logo na sua oposição, o opressor. Mas e quando a gente diz que Sicrano é carente? Em que a gente pensa?

“Carente” foi um jeito singelo que acharam para não chamar o pobre de pobre. Acontece que falar que alguém é pobre parece ser indelicado. Mais: falar que alguém é pobre lembra diretamente que alguém é rico e fazer com que o povo pobre perceba a existência de classes em conflito pode ser bastante perigoso para alguns e algumas. A palavra “carente”, usada nesse sentido, é uma palavra-máscara. Isso, uma daquelas palavras que querem encobrir outras para disfarçar a realidade excludente.

“Carente” é aquele que precisa de caridade. O povo oprimido precisa de libertação. A caridade é doada por quem não é carente. A libertação é conquistada pelos homens oprimidos e mulheres oprimidas na luta social, na luta de classes, no enfrentamento com o mundo, na comunhão entre aqueles(as) que sofrem. Além do mais, a caridade e a libertação possuem uma diferença fundamental: a caridade mantém as coisas como estão, os/as caridosos(as) continuam caridosos(as) e os carentes continuam carentes, mas a libertação revoluciona. Com a libertação ninguém permanece, nem se torna, oprimido.

Há mais um elemento interessante por trás do fato de as pessoas pobres serem identificadas como carentes e de as pessoas ricas não o serem. Afinal, quais são as carências da classe social economicamente dominante? Do que esse sujeito histórico e político precisa para continuar a existir? O que não pode faltar aos homens ricos e às mulheres ricas para que eles e elas não deixem de ser ricos(as)? Arrisco dizer que para que os opressores continuem a existir como opressores é preciso que se mantenham as relações de opressão. Ou seja: é preciso que ricos(as) permaneçam ricos(as) e que pobres permaneçam pobres. E, para fazer disso tudo algo mais singelo, é também preciso de caridade para com os/as “carentes”.

Por esses motivos, com este texto que agora estou mal ou bem acabando de escrever, digo aos companheiros e às companheiras do Diretório Acadêmico Demócrito de Souza Filho, a entidade que me representa como estudante – e digo também a quem mais interessar – que os/as jovens com os/as quais vocês trabalharão não são “jovens carentes”. São mais, bem mais. São companheiros e companheiras, estudantes, com quem devemos fortalecer a luta social e, em comunhão, prosseguir rumo à libertação.

Faço questão de dizer essas palavras, que também podem me pregar peças, porque nós não podemos deixar nossas boas intenções serem levadas pelo pensamento hegemônico opressor. Tenhamos cuidado com as palavras. Não por medo. Tenhamos cuidado sim, mas por afeto. Insisto: faz-se fundamental investigar as palavras, conhecê-las amiúde, amá-las mesmo, intimamente, ser afetuoso nelas e com elas, perceber-se nelas, sendo com elas alguém com o mundo e com os/as outros(as).

10 Comments:

At 9:58 AM, Blogger El Mostro said...

Saludos desde Mosterio.

 
At 10:58 AM, Anonymous Anonymous said...

excelente o texto e a responsabilidade que todos temos com as palavras...bjo

 
At 6:09 AM, Anonymous Anonymous said...

Beto, que texto in-crí-vel. Permita-me divulga-lo!
Achei a sua linguagem nele, a cadência, a maneira como desenvolveu o pensamento, parecido com Ilha das flores, vc não?
bjos da companheira que tb é carente!

 
At 4:28 PM, Blogger Beto Efrem said...

Sim, sim, salabim! Vi Ilha das Flores semana passada mais uma vez. Influenciou, influenciou! hauuaha

saudades!
cheiros!

Ah! E pode usar e abusar!

 
At 10:25 AM, Blogger iagê said...

Muito bom, Beto!

Citei no meu terreiro, com a tua licença.

Um abraço,

Iagê

 
At 10:27 AM, Blogger iagê said...

Em tempo: Vi que falaste no Ilha das Flores. Te referes ao documentário filmado pelo Jorge Furtado aqui em Porto Alegre?

O documentário te influenciou de que maneira?

Outro abraço,

Iagê

 
At 11:21 AM, Blogger Beto Efrem said...

Sim, sim, salabim mais uma vez! Val e eu estamos falando desse mesmo Ilha das Flores.

Acho que me influenciou no ritmo do texto. A coisa de definir passo por passo e de fazer conexões conceituais. Tipo a coisa do tomate, do porco, do lixo, dos homens. É, acho que foi no ritmo.

um cheiro!
saudades!

 
At 8:11 PM, Blogger iagê said...

Saquei!

Estive na Ilha dos Marinheiros (que faz parte do mesmo delta onde fica a Ilha das Flores, aqui em Porto Alegre) esses tempos, com um grupo da PUCRS, muito próximo do NAJUP, que está trabalhando com o "conflito" entre o direito à moradia e o direito ambiental, já que é uma área de proteção. Lá descobri algumas coisas intrigantes sobre esse documentário: 1) ele não foi gravado na Ilha das Flores, mas sim nessa Ilha dos Marinheiros; 2) ganhou o nome de Ilha das Flores justamente pra forçar um jogo de palavras com a delicadeza e dureza da pobreza (cacofônico, isso); 3) os moradores não querem ver Jorge Furtado nem pintado de ouro, pois se sentem explorados por um vídeo que, no fim das contas, se mostrou totalmente desengajado, servindo apenas de trampolim para a carreira dele; 4) a cena em que as pessoas comem o lixo, o resto dos porcos, é uma montagem - os moradores até hoje desprezam e fazem questão de denunciar essa cena em que parecem se alimentar da comida dos porcos.

Posso ir atrás de mais informações se quiseres, mas foram notícias que ouvi da própria comunidade e me deixaram estarrecido.

Um abraço,

Iagê

 
At 4:45 PM, Blogger Unknown said...

Danado você, hein? Muita afetuosidade com as palavras, intimidade mesmo!

Aproveitando os comentários, até vi um quê de ilha da flores, mas não pude deixar de imaginar foi você mesmo falando e explanando seu ponto de vista (com sotaque e tudo), pareceu muito com o teu jeito de falar das coisas. pelo menos pelo que eu me lembro...

abraço!

 
At 5:29 AM, Blogger Sil said...

Beto,
tenho uma inveja boa desse teu texto.
é maravilhoso, é revolucionário.
parabéns!
Abraços,

 

Post a Comment

<< Home