Monday, June 18, 2007

Fábula sobre a guerra


Começou quando a tristeza chegou ao coração do poeta. E nem era mesmo tristeza, era um rascunho, um ensaio, um sentimento anônimo a se alojar no pequenino espaço que há entre a cor das íris e a cor da alma. Não, não era palavra ainda. Era um impulso, algo amorfo, sem lugar no mundo que até então ali se fazia. Mas era tão grandiosa, a tristeza que nem era tristeza porque ainda não possuía nome, que as palavras todas estranharam sua presença.

Curiosas, foram todas elas, as palavras, ao encontro do novo sentimento. Buliçosas, mexeram muito com ele. A palavra-cortesia de pronto desejou ao recém-chegado as boas vindas. A palavra-sentido lhe cheirou o perfume, achando-o bastante parecido com aquele das margaridas em despedida da primavera. Lambeu-lhe, tateou-lhe, e embora tenha achado a sua pele macia, não aprovou o seu sabor. Trazia-lhe à memória o gosto de lágrimas silenciosas. A palavra-afeto resolveu conhecer com um abraço sincero aquele que se aproximava. A palavra-medo cutucou o desconhecido com a ponta do dedo indicador e, apesar da imobilidade do novato, refugiou-se rapidamente bem atrás da palavra-segurança.

Assim, foram todas as palavras, uma a uma, conhecer a tristeza que ainda nem era tristeza porque não possuía nome. A última da longa fila era a palavra-tempo. Sentou-se ela defronte do inominado e pacientemente esperou. Mas porque todas as outras palavras já estavam nervosas com tudo aquilo e a palavra-pressa lhe irritava um bocado, a palavra-tempo resolveu logo perguntar ao novo sentimento sobre sua história. Ele então falou de onde vinha. Disse de suas dores e da imensa desesperança que experimentava. Contou de lugares dos quais nunca se soube, de profundezas nunca dantes navegadas. E enquanto falava a tristeza que ainda nem era tristeza porque não possuía nome, como que por encantamento, deu-se à feitura da palavra.

Escreveu, dessa forma, o poeta seu primeiro verso triste. Verso este que veio seguido de outro, de mais outro e de mais tantos outros que todas as palavras passaram a se enciumar muitíssimo da palavra-tristeza. Ocorria que esta, mesmo que não escrita, diluía-se em tudo o que o poeta criava. Não havia texto seu em que ela, de um modo ou de outro, não tivesse participação. Eram crônicas e sonetos, ensaios e sextetos, canções e panfletos: em tudo se socorria à feitura da tristeza.

Organizaram-se então as palavras. Decidiram que iriam à tristeza dizer-lhe algumas boas verdades. A tristeza, sem quaisquer cuidados, entretanto, passou a tomar as palavras mais e mais para si. Devorando as palavras, sílaba por sílaba, letra por letra, cuspi-as todas através dos dedos do poeta que já não cessava a escrita. Assustadas, as palavras se puseram em fuga. Distanciaram-se largamente da tristeza. Organizaram-se mais uma vez. Foi aí que declararam todas as palavras, com todas as palavras, guerra à tristeza.

As palavras formaram de antemão, como estratégia, trincheiras tão resistentes e fortalezas tão impenetráveis nas paredes da alma do poeta que a tristeza, imensa, restou solitária no coração. O poeta, tomado pela tristeza e por palavras inacessíveis, calou-se. Por outro lado, ocorria que a tristeza, sem palavras que lhe servissem de alimento, estava impedida de contar sua história e, portanto, de se refazer. A tristeza ia ficando esquecida. Mas isso também se dava com as palavras. Sem escrever, o poeta se desfazia e, porque nem tristeza mais podia sentir, nem saudade sentia, nem nada, tornava-se ele indiferente às palavras.

Resolveram as palavras, porque era o jeito mesmo, que deveriam pactuar a paz com a tristeza. A palavra-teimosia não gostou da idéia, mas aceitou. Também teimava em não se propor a nada alternativo. As palavras todas se aproximaram por uma última vez da tristeza e lhe propuseram o anteriormente discutido. A tristeza não demorou: concordou com o pacto. Mas a palavra-desconfiança logo alertou para o fato de que a tristeza bem que poderia estar apenas a enganá-las e que melhor seria se houvesse uma testemunha para assegurar o acordo. Neste momento a palavra-lembrança citou o nome do poeta que logo foi aceito por todas as palavras e inclusive pela tristeza como legítimo interessado na questão.

Depois de muito, muito gritarem as palavras e a tristeza, o poeta veio ao seu encontro. Colheu as palavras e a tristeza entre as mãos carinhosamente e, nesse gesto, lhes testemunhou o ato que repartiu a poesia. Dali em diante, um pedaço da poesia que fazia o poeta cabia às palavras e a outra parte era de pertença da tristeza. Dali em diante, sempre que ele houvesse de escrever, colheria mais uma vez às mãos um tanto de palavras e um tanto de tristeza, em razão da feitura inteira da poesia e do seu próprio reencontro.

Por isso o samba não deixará nunca de ser triste. E a valsa, por mais que bela e alegre, nunca abandonará certo ar de tristeza. Foi assim que a palavra-guerra se fez na realidade. Todas as demais que lhe tentam imitar o sentido não têm qualquer razoabilidade. Contem o que quiserem os vitoriosos do Iraque, do Haiti ou de Oaxaca: são mentiras, desafetos, desrespeitos, desamores.

Uma única guerra bonita houve, entre as palavras todas e a tristeza. Dela não restou vencedor, também não restou vencido. Nasceu apenas o indizível sentimento existente no pequenino espaço que há entre a cor das íris e a cor da alma e que, desde então, faz de todo poeta um poeta. Sentimento este por ninguém, nem pelo tempo, jamais questionado em sua história. Permitiu-se ele ficar nas margens do não-dito e é dele que sobrevivem as raízes dos baobás.

5 Comments:

At 6:24 PM, Blogger Ronaldo Monte said...

Também tenho palavras entre a iris e a alma, muitas delas ainda mesmo sem cor. Me identifiquei com este poeta. Muito obrigado, Roberto.

 
At 4:19 PM, Anonymous Anonymous said...

vamos sim, beto. sexta nos falamos!

 
At 11:00 AM, Anonymous Anonymous said...

adorei,muito bom o texto...sinto-me extremamente contemplada...
beijinhos alagoanissimos

 
At 5:05 AM, Anonymous Anonymous said...

Beto, feliz por teu texto, gostei muito. Tão profundo, tão poético...
Gostas de Clarice, não é?
=D
Beijo grande!

*obrigada pela diquinha querido, eu pus daquele jeito pra tentar dar um destaque, já que era "a principal", sabe? e que bom que gostasse do texto, fico bem feliz!

 
At 10:47 AM, Blogger Unknown said...

betoo, muito boa!
adoro fábulas! gosto muito mesmo!
e essa foi linda, apesar de falar da tristeza do poeta! :pp
mas até ela às vezes é linda!
abraço!

 

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