Sunday, April 29, 2007

Conto sobre a menina que dava nomes


Quando era menina, muito menina, deitava-se na cama, de um modo que, cruzando-a, punha as pernas para cima, encostadas na parede, deixando a planta dos pés viradas para o teto do quarto. Às vezes erguia também as mãos. Assim, com pés e mãos voltados para o alto, parecia perseguir o branco do teto.

Sendo menina, muito menina, desfazia a cama, a parede, o teto, o quarto enfim e tudo recriava. Do branco tirava nuvens grandes com as quais podia brincar com as pontas dos dedos. Do azul da pintura das paredes, recolhia o suficiente de cor para garantir certo ar de infinito ao recém-nascido céu. Dali em diante tudo era novo e bastante mutável. Dependia apenas dos gestos encantados que desenhava no ar.

Porque era menina, muito menina, dava nome a tudo o que produzia. A todas as coisas atribuía sentidos. Mas porque desde cedo havia aprendido a sentir saudade, embora não soubesse pronunciar a palavra, preocupava-se sempre em se aproximar daquilo tudo que criava. Entendeu menina, muito menina, que tecia vínculos com o mundo a que dava vida. E aprendeu de tal maneira que corria de um lado para o outro com suas nuvens a procurar todas as coisas. Fazia-lhes visitas e respeitava quando elas – as coisas que criava e dava nome - precisavam de espaço. Bem conhecia das superfícies, bem acariciava os profundos.

Apenas porque era menina, muito menina e dava nome a tudo, atribuindo-lhe sentidos, era perdidamente afetuosa com tudo e com tudo estabelecia – em superfícies ou profundezas – cumplicidades. Sim, e respeito. Entendia quando algumas das coisas que criava ganhavam asas e procuravam outros céus e outras nuvens. Nestes momentos, abria bem muito as palmas das mãos e se despedia com afeição do que partia. Via costumeiramente isso ocorrer com as estrelas. Isso porque menina, muito menina, ouviu de sua mãe que seus olhos eram nascedouros de estrelinhas. Pensava que, quando era noite e tinha que dormir e o céu já não estava sob o controle das pontas dos seus dedos, as estrelinhas iam todas embora para um céu escuro, bem diferente do seu. No seu céu azul de menina com as pernas para cima, estrelas cintilavam mesmo durante o dia.

Visto que era menina, muito menina, dando nome a tudo o que criava, não nomeava aquilo mesmo que fazia. Era seu aquilo, mas tão seu, mas tão seu, que nem lhe passava pela cabeça lhe conferir título. O processo de criar tudo e de dar nome a tudo o que criava não tinha nome próprio. Acontece que era ela aquilo. O espaço-tempo em que ela, ao passo em que conduzia nuvens e roubava o azul das paredes do quarto, fazia-se menina, muito menina, pertencia ao mundo do não-dito. E, sendo ela assim, menina, muito menina, bastava-lhe chamar poesia com seu próprio nome de menina.

Monday, April 16, 2007

Crônica sobre o inesquecível


Do jeito que eu tinha de olhar restaram silenciosos sorrisos e um certo ar de desolação. Talvez tenha restado também alguma solidão, que só existe – e insiste – porque não haveria poesia desprovida de um miúdo de tristeza. Do jeito que eu tinha de olhar ficou uma dor aguda, uma alegria esparramada, um mania teimosa de cuidar das superfícies e acariciar os profundos.

Agora, enquanto de soslaio encaro o tempo e suas vociferações, a cidade reclama com o passado. Não aceita ela o fato de se sentir coberta por ele. Não quer ela está sob ele quando a rosa se desmancha, murcha e os transeuntes recordam-na rósea, esguia, em primavera. Não admite ela estar suja dele quando os salões de baile se esvaziam de casais de dançarinos e a moça da limpeza é capaz de sentir com a vassoura a ausência da valsa que o chão desprende. Não compreende a cidade o jeito como ao olhar para uma esquina, ao passar por uma rua, ao entrar em uma porta, ela mesma dá lugar ao meu jeito de olhar o homem que amei naquela esquina, atravessando aquela rua, saindo por aquela porta. Não percebe a cidade que, ainda que sem querer, exala nossos amores. Manifesta ela momentos. Sente ela falta de si. A cidade sente saudade de si. Não percebe, ou percebe, e reclama com o passado interminavelmente.

Do jeito que eu tinha de olhar restaram compreensões que só tenho hoje porque hoje, da cidade, vejo no tempo – e em suas vociferações – o jeito que eu tinha de olhar. E nele, há muito. Acontece que não se enxerga a cidade com dois olhos apenas. Sim, é preciso de alma para enxergar a cidade. É preciso de tato, de toque, de paladar para enxergar. Mas mais do que isso: é fundamental que haja mais do que dois olhos para olhar a cidade. Justamente porque ninguém vê o mundo em solidão. A cidade, para ser conhecida, demanda companhia. Conhecer, apreender, requer, além de tempo, compartilhamento.

O cavalheiro se desloca no salão e desvenda seus mistérios enquanto troca passos com a dama. A rosa se faz e refaz inesquecível no cheiro da pessoa amada. Esquinas, ruas e portas comportam-se em forma de lembranças porque em esquinas, ruas e portas ele estava e eu o amava. Não houvesse um outro ele brincado com os versinhos da canção de Chico no ouvido dela, o espaço-tempo existente entre uma palavrinha e outra da canção desfar-se-ia de sentido para Mariana. A cidade só se dá no tempo e apenas se permite conhecer na ação de homens e mulheres através dele. A cidade reclama com o passado como o verso decassílabo reclama da métrica. Não fossem o passado e as marcas que lhe deixamos em atos de partilha, a cidade se perderia em suas próprias avenidas e calçadas. Não fosse a métrica, a rígida forma, o verso decassílabo perderia toda a poesia que há em sua ânsia por ser livre.

A cidade, suja de passado, ganha marcas do inesquecível. Estas se desenham com tintas de aquarelas de cores despetaladas também chamadas de saudade. Assim que os homens e as mulheres com elas pintam, deixam um bocado de si. E é exatamente esse bocado a matéria que marca, de inesquecível, salões de baile, jardins de rosas, ruas, esquinas e portas, versinhos de canções de Chico. A mistura dos bocados constrói a cidade que, pensando que se encobre de passado, realiza-se verdadeiramente a partir dele.

Do jeito que eu tinha de olhar restaram bonitas vontades de ver meus olhos encobertos por outros. Sim, porque ainda que reclamemos e acusemos olhares alheios de responsáveis por nossas cegueiras, é apenas quando nos damos os olhos a enxergar sob outros olhos que nossos olhares se realizam. A cidade repleta de passado, nossos olhos repletos de olhares e um bocado de nós sempre a fazer pedaços do mundo e do tempo inesquecíveis.