Monday, December 03, 2007

Carta ao poeta desaparecido


Se lhe perguntarem, meu amigo, o porquê de suas atuais ausências das palavras, diga-lhes que você está a largar saudades por aí, que anda de equilibrista em espiral de calendário, segue colhendo alecrim. Lembre, como que por nada, que tem ouvido uns bons sambas do Noel Rosa e que pressente cheiro de carnaval nas ruas de nosso Recife. Assegure que está muitíssimo preocupado com o futuro das andorinhas. Aproveite e fale um tanto mal da transposição do Rio São Francisco.

Mas não, meu bom amigo, não fale a verdade. Você é poeta, não é funcionário público: não tem presunção de boa-fé! Mas também não precisa mentir, porque essa coisa de “ou é verdade ou é mentira” não passa de reducionismo e essas dicotomias rasas não funcionam no poema. É só fingir um bocadinho, entende? Na vá admitir que se escreve pouco, se quase não se dá às letras, é porque o texto já lhe é, por demais, perigoso. O poema eterniza a dor. Mas assumir essas fragilidades é o fim, é eternizar o poema. E ninguém agüenta, nem mesmo o leitor mais encantado e sofrido, um poeta de repeteco.

Vá lá que você se encontre preso naquela mesma rima barata. É até compreensível que já não se aperceba de suas intimidades com as linhas, que nem as tardes de Candeias lhe façam repletos os olhos. Entende-se cabalmente sua incapacidade de tirar verso do que quer que seja. Nem as lembranças lhes são mais suficientes. Você desdenha do vendedor de doce japonês, dos tocadores de alfaia do Bairro de São José. Você não cumprimenta mais Iemanjá, nem se veste com a guia de Xangô. Você ignora a fabulosa incerteza das coisas. Compreensível. Mas não, meu amigo, não se deixe entregue.

Vão lhe dizer que isso passa e que em certo tempo você voltará ao papel. Não responda, não aceite prazo. Sim, porque isso não passa. É você quem passará isso. E quando passar, você nem mais será você... Até lá não se incomode muito. Tristeza a gente esquece nos cantinhos. Entre as páginas cinqüenta um e cinqüenta e dois dos Manuscritos Econômico-filosóficos que você deixou na mesa da sala, por exemplo. Entre uma esquina e outra das ladeiras de Olinda. Entre novembro e dezembro.

Tristeza se desfaz nas coisas miúdas. Tudo bem que você está à espera do dia em que todos os poetas sairão às ruas e farão de automóveis versos, de asfalto, de presilha de cabelo, de vestido amarelo de Cecília, de pactos de paz, de lixo radioativo produzirão estrofes. Tudo bem que você aguarda grandiosidades, você é um poeta, mesmo o cotidiano é imenso e as joaninhas para você serão sempre asteróides. Mas a tristeza, ah meu amigo, a tristeza é discreta. Portanto, vá de calmaria. Caminhe, siga. E se lhe perguntarem o porquê de suas atuais ausências das palavras, você já sabe o que retorquir.

Diga-lhes que está a cozer horizontes e que conversa com os baobás sobre o materialismo histórico-dialético. Lembre-se, como que por nada, do fato de serem os baobás marxistas e de que você descobriu há pouco o cinema francês. Fale das novidades de Natália e de que agora você sabe bem onde fica a República Dominicana. Faça ar de estou-à-disposição e roube um beijo rapidamente. Não diga a verdade, mas também não minta. Dê um jeitinho daqueles seus, porque eu desconfio meu amigo, que isso já é poesia.

5 Comments:

At 11:11 AM, Anonymous Anonymous said...

E de cá penso e me pergunto: onde andará minha poetisa desaparecida?
Colarei anúncios por todos os postes, por todas as sombras frescas, por todos os lugares de porres, por todo pedaço de mundo que a ins-pire.
E mais! Um 0800 pra qualquer desinformação, qualquer pista que me leve leve ao encontro da poeta.
Enquanto isso vou. quieta. sendo. levada pela desvia que pouco trafega poesia. Torcendo por um acidente, um choque quase violento, que descatracalize, quebre engrenagens. e me cause sobrevôos.

Tu, mesmo com tantos pesos, sempre voando. Uma boniteza toda.

Um beijo-balde. daqueles que se enchem até a borda de saudades.

 
At 2:35 PM, Anonymous Anonymous said...

"Tristeza se desfaz nas coisas miúdas. Tudo bem que você está à espera do dia em que todos os poetas sairão às ruas e farão de automóveis versos, de asfalto, de presilha de cabelo, de vestido amarelo de Cecília, de pactos de paz, de lixo radioativo produzirão estrofes. Tudo bem que você aguarda grandiosidades, você é um poeta, mesmo o cotidiano é imenso e as joaninhas para você serão sempre asteróides. Mas a tristeza, ah meu amigo, a tristeza é discreta. Portanto, vá de calmaria. Caminhe, siga. E se lhe perguntarem o porquê de suas atuais ausências das palavras, você já sabe o que retorquir."




Lindo Beto! Realmente lindo! Também estará entre os que visitarei. Um grande abraço.

 
At 6:44 PM, Anonymous Anonymous said...

Um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente ... e não a gente a ele!

- Mário Quintana -

 
At 1:18 PM, Anonymous Anonymous said...

Mas Beto, rapaz! Que coisa boa encontrar essa sombra de baobá. Estarei sempre por aqui, aproveitando para mirar o mundo de um outro ângulo... o do poeta.
Depois conversaremos sobre a possibilidade de colocar no cardápio do Farândola os dois últimos parágrafos da "Carta ao poeta desaparecido".
Grande abraço.
Rodolfo

 
At 1:21 PM, Blogger Bastidores said...

Mas Beto, rapaz! Que coisa boa encontrar essa sombra de baobá. Estarei sempre por aqui, aproveitando para mirar o mundo de um outro ângulo... o do poeta.
Depois conversaremos sobre a possibilidade de colocar no cardápio do Farândola os dois últimos parágrafos da "Carta ao poeta desaparecido".
Grande abraço.
Rodolfo

 

Post a Comment

<< Home