Para um homem dado à feitura das palavras, o silêncio poderia, de antemão, parecer estranho. Assim como soaria antagônica, em tese, a conjunção de letrinhas que gera o vocábulo responsável pela sua própria ausência. Dá-se, no entanto, que o silêncio não silencia. É bem provável que, segundo o senso comum, não imita sons, não principie a música, torne inoportuna a poesia. Mas não, insisto, ele não silencia. Isso porque há palavras só pronunciáveis em silêncio. Da mesma maneira, existem passos, valsas, notas e instrumentos musicais, sambas e tocares de mãos que só se permitem dançar no silêncio. Há versos recitáveis sem que a boca desenvolva qualquer movimento.
Um homem dado à feitura das palavras não poderia se furtar à feitura do silêncio. O fizesse, correria o risco de se manter distante da cumplicidade. É que poucas coisas dizem tanto da cumplicidade quanto o silêncio. É como quando estou, nas longas distâncias em que percorremos juntos, ao lado de Mariana no carro. Há sempre um momento em que ambos se calam. Depois de tudo o que é dito, das trocas de palavras, umas arredias, outras dóceis, umas mansas, outras ariscas, o silêncio se contempla. E fica ali – quase tangível – entre o homem e a mulher, recebendo-o e recebendo-a como quem conforta e fala de liberdade.
Sim, liberdade. Porque a partir do silêncio cada uma das almas ganha, livre, asas e paira sobre outros terrenos. Por mais que minha atenção seja chamada pelo trânsito, pela estrada, resta ali mais corpo e menos homem. Restam, em verdade, dois corpos frágeis e desatenciosos, entregues um aos cuidados do outro, um à fidelidade do outro. Mas são corpos apenas. Mariana e Roberto, ela mesmo e ele mesmo, abandonados um ao outro, já nem mais existem no automóvel. Visitam memórias, sentem alegrias e tristezas, pensam no trabalho, nas leituras, nas atividades do movimento. Por vezes até percebo, durante o silêncio, Mariana sorrindo singelamente. Estar livres ao mundo não faz deles – de Mariana e Roberto – todavia, desvinculados. Pelo contrário: livres são na confiança de um na ausência presente do outro, porque há uma fé incontestável no outro que, às vezes, ela e ele chamam de amizade.
No amor, percebe-se que o silêncio não se confunde com a solidão. O silêncio existe mediante a espera. A solidão é tão sozinha que já não espera nada de ninguém. Nas folhas que o poeta carrega, ainda que nelas não haja quaisquer palavras, há entre eles – o poeta e as folhas – uma potencialidade. Espera-se – e isso é uma esperança – que do silêncio brote poesia. Entre a musicista com seu violino e o violino da musicista, há a mesma relação. O silêncio de ambos, um defronte o outro, é a espera de um pelo outro em razão da canção. Assim como acontece com o moço apaixonado que aguarda ansiosamente que o telefone toque enquanto o aparelho não imite uma vibração sequer. Ligue ou não ligue a pessoa tão desejada, corresponda ou não ela ao sentimento que move o moço à espera, daquele silêncio viverá algo, seja esse algo uma ida à roda gigante da cidadezinha do interior para comer maçã caramelada, seja ele uma lágrima.
A solidão, por sua vez, é uma desesperança só. E por mais que seja ela fundamental a certas pessoas, deve ser passageira. Parece saudável que seja desse modo. A solidão não silencia. A solidão devora. É por esse motivo que os homens e as mulheres que sonham e se libertam, os fazem em comunhão, nunca sozinhos ou sozinhas. É também por esse motivo que não devemos machucar o silêncio, perverter-lhe seus mistérios, desrespeitar-lhe os sabores. O silêncio é sagrado, faz-se como uma prece. Não é por acaso que alguns religiosos prefiram orar em silêncio, uns ao lado dos outros. Religião vem do latim religare: retomar-se em si e nas divindades, mas com os outros.
O silêncio, como a palavra, é compartilhamento, manifestação da linguagem. Erra quem julga que o silêncio não fala. Há por um acaso mais a dizer depois de um eu-te-amo sem resposta proferida, quando tudo que se quer ao dizer eu-te-amo é ouvir eu-te-amo em troca? Quem ama e diz e quem não ama e cala falam um ao outro, sem exceção. Está lá tudo o que precisa ser comunicado. A partir de então – e só a partir de então – vem a solidão. Não havendo mais o que ser dito, em som ou em silêncio, não há mais o que esperar. Por isso, é imprescindível compreender o silêncio. Não que essa compreensão evite a dor. O fato de eu ler um soneto de Vinícius não me faz menos ou mais preparado para amar e não ser amado. Mas simplesmente para nutrir coragem no lidar com a sinceridade. A sinceridade, em certas ocasiões, também silencia.
Gosto mesmo, entretanto, eu preciso confessar, do silêncio posterior ao beijo. Daquele silêncio que só se cumplicia no instante seguinte à despedida dos lábios. Quando não há palavra que descreva, quando não há eu-te-amo dito que baste, quando só o silêncio ocupa os espaços entre os olhos. Gosto mesmo, eu preciso confessar, do silêncio posterior à feitura do amor, quando os corpos – e quem sabe as almas – se despedem, deixando-se um no outro, uma na outra. Gosto mesmo, eu preciso confessar, do silêncio posterior à criação da palavra, do texto, da crônica, do afeto. Quando quem escreve começa a sentir saudade das letrinhas que deitou nas linhas. Quando quem lê toma aquilo como seu. Gosto mesmo, eu preciso confessar, do silêncio que, depois do grito, transforma a indignação em consciência e a consciência coletiva em revolução. Quando, no silêncio e na palavra, a esperança se refaz.
Para Mariana Azevedo, pelos nossos caminhos a Candeias.