Thursday, March 29, 2007

Poeminha sobre amores inabaláveis

sapatos pedem pés
pés pedem chãos, terras molhadas
terras molhoadas pedem...
pedem seu próprio cheiro, no verão

Tuesday, March 13, 2007

Crônica sobre o silêncio

Para um homem dado à feitura das palavras, o silêncio poderia, de antemão, parecer estranho. Assim como soaria antagônica, em tese, a conjunção de letrinhas que gera o vocábulo responsável pela sua própria ausência. Dá-se, no entanto, que o silêncio não silencia. É bem provável que, segundo o senso comum, não imita sons, não principie a música, torne inoportuna a poesia. Mas não, insisto, ele não silencia. Isso porque há palavras só pronunciáveis em silêncio. Da mesma maneira, existem passos, valsas, notas e instrumentos musicais, sambas e tocares de mãos que só se permitem dançar no silêncio. Há versos recitáveis sem que a boca desenvolva qualquer movimento.

Um homem dado à feitura das palavras não poderia se furtar à feitura do silêncio. O fizesse, correria o risco de se manter distante da cumplicidade. É que poucas coisas dizem tanto da cumplicidade quanto o silêncio. É como quando estou, nas longas distâncias em que percorremos juntos, ao lado de Mariana no carro. Há sempre um momento em que ambos se calam. Depois de tudo o que é dito, das trocas de palavras, umas arredias, outras dóceis, umas mansas, outras ariscas, o silêncio se contempla. E fica ali – quase tangível – entre o homem e a mulher, recebendo-o e recebendo-a como quem conforta e fala de liberdade.

Sim, liberdade. Porque a partir do silêncio cada uma das almas ganha, livre, asas e paira sobre outros terrenos. Por mais que minha atenção seja chamada pelo trânsito, pela estrada, resta ali mais corpo e menos homem. Restam, em verdade, dois corpos frágeis e desatenciosos, entregues um aos cuidados do outro, um à fidelidade do outro. Mas são corpos apenas. Mariana e Roberto, ela mesmo e ele mesmo, abandonados um ao outro, já nem mais existem no automóvel. Visitam memórias, sentem alegrias e tristezas, pensam no trabalho, nas leituras, nas atividades do movimento. Por vezes até percebo, durante o silêncio, Mariana sorrindo singelamente. Estar livres ao mundo não faz deles – de Mariana e Roberto – todavia, desvinculados. Pelo contrário: livres são na confiança de um na ausência presente do outro, porque há uma fé incontestável no outro que, às vezes, ela e ele chamam de amizade.

No amor, percebe-se que o silêncio não se confunde com a solidão. O silêncio existe mediante a espera. A solidão é tão sozinha que já não espera nada de ninguém. Nas folhas que o poeta carrega, ainda que nelas não haja quaisquer palavras, há entre eles – o poeta e as folhas – uma potencialidade. Espera-se – e isso é uma esperança – que do silêncio brote poesia. Entre a musicista com seu violino e o violino da musicista, há a mesma relação. O silêncio de ambos, um defronte o outro, é a espera de um pelo outro em razão da canção. Assim como acontece com o moço apaixonado que aguarda ansiosamente que o telefone toque enquanto o aparelho não imite uma vibração sequer. Ligue ou não ligue a pessoa tão desejada, corresponda ou não ela ao sentimento que move o moço à espera, daquele silêncio viverá algo, seja esse algo uma ida à roda gigante da cidadezinha do interior para comer maçã caramelada, seja ele uma lágrima.

A solidão, por sua vez, é uma desesperança só. E por mais que seja ela fundamental a certas pessoas, deve ser passageira. Parece saudável que seja desse modo. A solidão não silencia. A solidão devora. É por esse motivo que os homens e as mulheres que sonham e se libertam, os fazem em comunhão, nunca sozinhos ou sozinhas. É também por esse motivo que não devemos machucar o silêncio, perverter-lhe seus mistérios, desrespeitar-lhe os sabores. O silêncio é sagrado, faz-se como uma prece. Não é por acaso que alguns religiosos prefiram orar em silêncio, uns ao lado dos outros. Religião vem do latim religare: retomar-se em si e nas divindades, mas com os outros.

O silêncio, como a palavra, é compartilhamento, manifestação da linguagem. Erra quem julga que o silêncio não fala. Há por um acaso mais a dizer depois de um eu-te-amo sem resposta proferida, quando tudo que se quer ao dizer eu-te-amo é ouvir eu-te-amo em troca? Quem ama e diz e quem não ama e cala falam um ao outro, sem exceção. Está lá tudo o que precisa ser comunicado. A partir de então – e só a partir de então – vem a solidão. Não havendo mais o que ser dito, em som ou em silêncio, não há mais o que esperar. Por isso, é imprescindível compreender o silêncio. Não que essa compreensão evite a dor. O fato de eu ler um soneto de Vinícius não me faz menos ou mais preparado para amar e não ser amado. Mas simplesmente para nutrir coragem no lidar com a sinceridade. A sinceridade, em certas ocasiões, também silencia.

Gosto mesmo, entretanto, eu preciso confessar, do silêncio posterior ao beijo. Daquele silêncio que só se cumplicia no instante seguinte à despedida dos lábios. Quando não há palavra que descreva, quando não há eu-te-amo dito que baste, quando só o silêncio ocupa os espaços entre os olhos. Gosto mesmo, eu preciso confessar, do silêncio posterior à feitura do amor, quando os corpos – e quem sabe as almas – se despedem, deixando-se um no outro, uma na outra. Gosto mesmo, eu preciso confessar, do silêncio posterior à criação da palavra, do texto, da crônica, do afeto. Quando quem escreve começa a sentir saudade das letrinhas que deitou nas linhas. Quando quem lê toma aquilo como seu. Gosto mesmo, eu preciso confessar, do silêncio que, depois do grito, transforma a indignação em consciência e a consciência coletiva em revolução. Quando, no silêncio e na palavra, a esperança se refaz.

Para Mariana Azevedo, pelos nossos caminhos a Candeias.

Saturday, March 10, 2007

Poemazinho da dor enunciada

Veio com as mãozinhas vazias
Saiu carregando alminha minha
Que agora lhe escorre entre os dedinhos
E cá faz pocinhas em formas de saudade

Para Renata na praça

Wednesday, March 07, 2007

Crônica sobre o entre

Entre o menino que olha e o horizonte há algo que é maior que o menino, incabível no horizonte. Entre as letras destas palavras, mesmo entre as próprias palavras e o papel, há uma substância intocável e silenciosa que por vezes se pretende poesia. Sabe-se de sua existência como de um segredo. Entre a voz dos trovões de Xangô e os raios das tempestades de Oyá há uma energia inominável, da mesma áurea dos fins vermelhos das tardes de Candeias.

Entre a carta escrita e o moço apaixonado há uma cumplicidade esperançosa, uma espera por resposta, um saltitante temor de sua ausência. Entre a burguesia e o povo há a dominação, mas há de haver a luta de classes, a libertação. Entre as mulheres, entre os homens, há a linguagem. Entre deus e o diabo há um deixa - quieto. Entre as mãos das crianças dançando ciranda há suor. Mas há mais: há ritmo entre as mãos das crianças cirandeiras. Entre o código e o Poder Judiciário há uma triste cegueira para a realidade. Entre amigos, entre amigas, há irmandade. Entre irmãos, irmãs há uma árvore genealógica.

Entre o cabra que paquera e aquele que é paquerado há investimento. Entre o charque e a macaxeira há óleo, o Mercado da Madalena, tradição, sertão. Entre o sertão e a zona da mata há jovenzinhos cortando cana, latifúndios. Entre os latifúndios e a ordem das coisas há o Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais Sem Terra. Entre Mainha e minha janta há a padaria. Ela ficou de comprar o pão. Entre a massa e o fogo há fermento. Entre o ponto final e o início da oração seguinte há uma inexplicável ânsia por parágrafos. Entre o passado e o presente há uma gestalt em fechamento. Entre o presente e o futuro há o desejo de escrever um livro. Entre o presente e o agora há uma dádiva.

Entre as teclas e os dedos há a descoberta da palavra, criação. Entre os homens oprimidos e as mulheres oprimidas na busca por sua emancipação há diálogo. Entre quem desenha letrinhas no escuro, à noite, com a cabeça no travesseiro e quem deita as letrinhas no texto há certa coragem. Entre a saudade e a distância há dor, tempo. Entre os ponteiros do relógio há versos decassílabos. Entre a atriz e o espectador há o palco, o fantástico, o aplauso. Entre o médico e a paciente há confiança. Entre o parlamentar e o votante há pretensão de representatividade. Entre o santo e a beata há fé. Entre o bem e o mal há um tango argentino. Mas entre o amor e a tristeza há um samba inexoravelmente. Entre esta alma e o baobá há proteção.

Entre o sujeito e o predicado há o verbo, a ação. Entre a tapioca e o coco: queijo coalho. Entre o sonho e a realização há a coletividade. Entre a lua cheia e o mar há Iemanjá. Entre a embalagem e o pão de queijo há polvilho. Entre o cinema e o filme há pipoca. Entre este eu e todos os outros há múltiplas personalidades. Entre a canção e o violão há cifras. Entre as estrofes, não há nada necessariamente, há tudo sempre.

Há sempre algo que não sou eu, que não é você, que nos é inteiriços e por partes, sendo maior que nossa soma, entre nós dois. Há sempre algo que só existe porque nós existimos, mas que a partir de nosso encontro, do toque, da descoberta, do compartilhamento, ganha vida própria, evoca sentimentos, faz dançar os sorrisos e as divindades. Há sempre um segredo, um sussurro, um tilintar no meio da noite, um sol se retirando, uma porta entreaberta. É como o beijo. Há sempre mais que duas bocas, diferentes amilases salivares, duas línguas. Há o beijo propriamente, o beijo que está sendo, que faz falta, que – claro – só existe porque a ele nos dispusemos, mas que transborda. O beijo transborda as margens de Oxum, nossas propriedades sobre ele. O beijo não tem donos, arrendatários, hipotecários. O beijo é mais do que seus criadores, mais do que criatura.

Há um sentimento de mundo entre o que é vivo, entre o que requer, entre o que cria poesia. Há um vínculo para além da participação fundamental de cada um considerado individualmente. Há um amor que só se explica nas simbioses, que supera as particulares necessidades. Há entre nós – o povo, as gentes – algo que necessita, que se interessa, que sente, que grita, que luta, que liberta. Há entre nós a ânsia pela coletividade. Há entre nós um ser que só é porque está sendo entre pessoas, entre mundos, entre sentires, entre versos. Há esperança nas entrelinhas.