Thursday, October 18, 2007

Poemazinho irrisório sobre o tempo correspondente

Ela, aflita, inteira:
- Menino, menino! Saia dessa chuva!
Ele, de soslaio:
- Oxe. Mande ela sair de mim. Agora pronto!

Friday, October 12, 2007

Crônica sobre a máquina


Na Cidade Alta de Olinda, num casarão rosado na subida da Ribeira, os olhos cansados da militante socialista cuidavam da máquina e do tecido. Disse-me ela boa noite quase sem atenção. Estava devotada àquilo que fazia de tal maneira que minha presença naquela casa mais se parecia com um presságio.

Vestida com uma camisola clara, sentada num banco de madeira, apoiando os braços nas margens da mesa da cozinha, Ana Emília passeava linha e agulha entre os dedos. Mexia na máquina de costura como se pretendesse apressar setembro que, apesar da insistência do calendário em lhe contar as datas, teimava em não chegar.

A primeira máquina de costura que conheci era de minha avó materna, Dona Nilza, ou melhor, Vovó Nilza. Era uma máquina antiga, rodeada de mistérios. É que não tinha a máquina jeito de servir para costurar. Era um móvel de madeira envernizado semelhante a uma mesinha de cabeceira, um tanto mais alto apenas. Embaixo tinha uma parafernália de metal que, se nela qualquer menino colocasse os pés, balançava-se. Mas era proibido ali pôr os pés. Disso eu soube assim que comecei a brincar, certo dia, com a máquina: – Menino, não bula nisso que essa é a máquina de sua avó! Mas entender mesmo o porquê daquela mesa com um ferro que balança, mas que não pode ser balançado, ser uma máquina de costura, eu não entendia.

Encontrar Ana Emília entregue àquela máquina trouxe-me saudades. Talvez nem saiba ela, mas suas mãos naquela noite coseram mais que linha e pano. A militante costurou o tempo pela madrugada. Exercício árduo. Porque o tempo, em nome de quem costuma se pedir paciência, é um afoito, o danado. Quem quiser que lhe queira enlaçar agulhas de modo linear. Errará. Sinto. O tempo não se comporta assim. É por isso que os calendários não dão conta dele. Pelo mesmo motivo, não cabe aos relógios dele dizerem.

Tempo não se mede. Tempo não se acerta com ponteiros. Falam-nos uma mentira desde meninos: a de que o tempo se vê nos dias das semanas, nas horas, nos minutos e nos segundos – inclusive em seus milésimos – como em continhas de criança no ábaco do pré-escolar. Ilusão. O tempo não se enumera. O tempo tem menos a ver com cardinais e mais com cheiro de bolo no forno: - Cuidado para não queimar, Dona Maria! Tem menos a ver com dígitos e mais com o diâmetro do silêncio após o amor declarado: - Eu também te amo.

Acontecia de ser a máquina embutida. Ana Emília me trazia o mistério da máquina de Vovó às saudades na cozinha do casarão da Ribeira. Dentro da mesa de madeira envernizada havia uma máquina de costura. Num destravar de pequenos ferrolhos o tampão da mesa se abria e dava passagem a um aparelho preto com uma agulha enorme.

Ana Emília com suas linhas dobrava o tempo, fazia dele colchas, tapetes, vestidinhos de boneca, fantasias de carnaval. Lembro-me da descoberta fantástica do porquê daquele móvel ser uma máquina. Os olhos agudos de criança astuciosa a desvendar Vovó, vestida com uma camisolinha clara, sentadinha num banco de madeira, apoiando os braços frágeis nas margens da mesa que era a máquina voltavam-me com o manusear do tempo desvelado por Ana Emília.

Acordei daquela noite com uma chuva fina fazendo festa às pedras das ladeiras de Olinda. O arrebol vinha calmo, alegre e terno, rolando pelas ruas, entre os paralelepípedos. Não cheguei a ver Ana Emília. Deixei o casarão da Ribeira sem despedidas. Não encontrei também panos, linhas ou máquina. Dei-me apenas com o resultado da madrugada da militante socialista: Ana Emília, de tanto acarinhar o tempo, cosera-me uma manhã setembrina.

Para Ana Emília, militante do Movimento dos(as) Trabalhadores(as) Rurais Sem Terra.